19 dezembro 2012

A difamação da Justiça Portuguesa

 O blogue A Falência da Justiça iniciou-se em maio de 2006.
Aí fui escrevendo algumas coisas absurdas, que me incomodaram como advogado e aí dei guarida a alguns textos que outros publicaram na imprensa, a propósito da crise da Justiça.
Interrompi esses escritos em maio de 2012 para deixar ficar a abrir o blogue uma citação do meu amigo António Marinho e Pinto, que apelida a ministra da Justiça de "barata tonta".
Parece-me que a expressão não é ofensiva.
Todos sabemos, desde a nossa infância,  o que é uma barata tonta, pois que todos (pelo menos quem tem mais de 50 anos) brincamos com baratas, cortando-lhes o caminho e deixando-as desorientadas  na busca de alternativa àquele que lhes barrávamos.
Em maio deste ano eu também pensava que a ministra era uma "barata tonta".
Hoje tenho dúvidas.
Quando se iniciou este blogue, escrevi, por baixo do título que "o sistema de Justiça faliu e não tem nenhuma hipótese de recuperação", concluindo que "é preciso inventar um sistema novo".
Alguém me acusou há uns dias de eu estar envolvido no que é qualificado como um processo de destruição do sistema judiciário público, para dar lugar "à negociata da arbitragem".
Tenho que deixar aqui muito claro que não têm razão, pelos motivos que passo a explicar.
1. Entendo que a arbitragem, a mediação e a negociação, como meios alternativos à Justiça tradicional são incontornáveis.
Sempre se disse que mais vale um mau acordo do que uma boa sentença. E por isso mesmo, até há poucos anos, a lei determinava que o juiz tinha um especial dever de promover o acordo das partes, podendo adiar as audiências sempre que elas lhe declarassem que estavam a preparar um acordo.
O processo civil era, tipicamente, um processo de partes, em que o juiz tinha uma função de árbitro dos interesses opostos, vinculado a um regime processual apertado, que garantia, a um tempo, a segurança jurídica e vinculação da decisão aos factos dados como provados e às soluções previstas no direito substantivo.
O processo judicial era visto, por todos, como o último recurso, que só chegava a  uma sentença decisória se as partes se não entendessem num acordo.
2. A perversão do processo civil iniciou-se com a desvalorização do princípio dispositivo e o incremento do poder dos juízes, porém com a redução do de promover a realização de acordos das partes.
Os juízes deixaram de ser árbitros em processo de parte, para passarem a ser verdadeiros administradores do processo e não apenas da Justiça.
3. A proliferação das escolhas de direito e a degradação da formação na área do processo civil acabou por conduzir a tentação - que alguns apontaram ao tempo das reformas realizadas neste século - de simplificar o processo civil.
O Código de Processo Civil de 1961 é um código semelhante ao da generalidade dos países com sistemas de raiz romano- germânica, em todos os continentes.
Quando se começou a falar da simplificação do processo civil, tive a oportunidade de chamar a atenção de um ministro - que, por acaso, sabia muito pouco sobre a matéria - para os riscos que mexidas muito profundas envolviam, nomeadamente no quadro das relações económicas de Portugal com o Brasil e os países africanos de língua portuguesa.
A simples eliminação dos agravos foi muito mal recebida pelos advogados do Brasil, de Angola e Moçambique, que defendem interesses de clientes seus em Portugal.
4. Os sucessivos governantes, pouco conhecedores das práticas processuais, foram fazendo alterações sobre alterações que causaram grandes brechas no edifício e multiplicaram as contradições geradas pelo sistema, na base da comparação da jurisprudência antecedente com a que se foi gerando, tomando em consideração os pressupostos das reformas.

Em vez de se dedicar á aceleração dos processos e à produção de decisões, os magistrados tiveram que se dedicar ao estudo das reformas e à implementação de soluções novas, necessariamente mais morosas, em consequência das reformas, passando boa parte do que, antes de cada reforma, era pacífico a ser controverso.
Uma das maiores asneiras, causadora de perda de séculos foi a de cada alteração da lei processual passar a aplicar-se apenas aos processos novos, quando era regra doutrinária essencial a de que as alterações da lei processual deveriam ter aplicação imediata.

A prestigiada Fundação Francisco Manuel dos Santos anunciou agora um novo estudos, realizado por dois simpáticos jóvens, sobre a justiça económica, realizado em cooperação com a Associação Comercial de Lisboa.
Li apenas algumas partes e ouvi os autores do estudo na televisão.
Acho que estamos perante um estudo muito interessante, porque nos dá uma imagem do quem está fora do uso do processo civil e o conhece mal, sintetizando tudo numa critica muito veemente contra o mau funcionamento da Justiça.
O sistema de Justiça está falido há muito tempo e tem que ser substituído por outro, porque este não funciona.
Só que, em minha opinião, se está a procurar resolver o problema por caminhos que conduzirão a efeitos completamente inversos.
O sistema de Justiça está falido, especialmente, porque foi desestabilizado por reformas disparatadas, que ainda não foram digeridas.
Só no plano das falência e das insolvências judiciais temos 3 códigos sucessivos, com dezenas de alterações.
Há processo de falência pendentes sob o regime do Código de Processo Civil de 1961, do Código das Falências e da Recuperação de Empresas e do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, todos com sucessivas alterações.
Para além disso ensaiaram os sucessivos governos reformas judiciárias traumáticas, acabando com tribunais, nalguns casos, em cidades e vilas onde há tribunais desde antes da independência.
Tudo isto era conhecido quando a ministra Paula Teixeira da Cruz tomou posse, pelo que quem anda pelos tribunais há muitos anos compreende perfeitamente o epiteto, aliás carinhoso, que lhe foi colado por António Marinho Pinto, numa noite de talento em que, seguramente, ressuscitou, brincadeiras de infância.

A ministra da Justiça é, seguramente, o contra-poder mais importante para o crescimento do investimento em Portugal, logo a seguir ao ministro das Finanças.
De um ponto de vista tributário, não é minimamente interessante investir em atividades económicas  em  Portugal.
No próximo ano, vai também deixar de ser interessante instalar empresas em Portugal para participar em empresas no estrangeiro (para o que Portugal tem essa ferramenta fabulosa da Empresa na Hora e da Empresa Online) ou para adquirir imóveis no país.
Uma empresa que seja constituída para adquirir vários imóveis não estava obrigada a manter uma escrita mercantil permanente nos anos em que não tivesse movimentos.
Agora, se não aprovar contas anualmente e não apresentar anualmente as devidas declarações fiscais, mesmo que pague os impostos relativos ao património de que seja proprietária, corre o risco de ser dissolvida e de os seus bens serem apropriados por terceiros.
É a própria ministra quem afirma que o país está falido e que a Justiça não funciona.
Nós dizemos apenas que a Justiça não funciona; mas somos obrigados a explicá-lo aos clientes.
A Justiça não  funciona porque o sistema está a ser permanentemente instabilizado e não tem capacidade para digerir as reforma que são realizadas no plano legislativo.
Os grandes códigos, os códigos de processo e os códigos tributários não podem ser mexidos todos os anos e, nalguns casos, várias vezes por ano, sob pena se se conduzir o país à situação de país marginal.
É o que está a acontecer em Portugal onde a situação se degradou, neste plano, a um nível extremo.
Estamos, porém, perante uma difamação da Justiça portuguesa.
Não se pode vir dizer, de um momento para o outro, que o sistema de Justiça não funciona, como se só agora se soubesse ou se se estivesse a fazer alguma coisa para remediar os males acumulados.
Apesar de tudo, o sistema tem magistrados e funcionários excelentes - com quem todos aprendemos muito.
O grande problema de Portugal está em que as reformas são feitas por quem não tem conhecimentos - nem do direito nem da vida - em áreas tão sensiveis como são as do processo.
Nesse sentido se pode dizer que o discurso sobre a Justiça é difamatório da mesma, porque lhe põe culpas que cabem apenas aos políticos.



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