19 dezembro 2012

A difamação da Justiça Portuguesa

 O blogue A Falência da Justiça iniciou-se em maio de 2006.
Aí fui escrevendo algumas coisas absurdas, que me incomodaram como advogado e aí dei guarida a alguns textos que outros publicaram na imprensa, a propósito da crise da Justiça.
Interrompi esses escritos em maio de 2012 para deixar ficar a abrir o blogue uma citação do meu amigo António Marinho e Pinto, que apelida a ministra da Justiça de "barata tonta".
Parece-me que a expressão não é ofensiva.
Todos sabemos, desde a nossa infância,  o que é uma barata tonta, pois que todos (pelo menos quem tem mais de 50 anos) brincamos com baratas, cortando-lhes o caminho e deixando-as desorientadas  na busca de alternativa àquele que lhes barrávamos.
Em maio deste ano eu também pensava que a ministra era uma "barata tonta".
Hoje tenho dúvidas.
Quando se iniciou este blogue, escrevi, por baixo do título que "o sistema de Justiça faliu e não tem nenhuma hipótese de recuperação", concluindo que "é preciso inventar um sistema novo".
Alguém me acusou há uns dias de eu estar envolvido no que é qualificado como um processo de destruição do sistema judiciário público, para dar lugar "à negociata da arbitragem".
Tenho que deixar aqui muito claro que não têm razão, pelos motivos que passo a explicar.
1. Entendo que a arbitragem, a mediação e a negociação, como meios alternativos à Justiça tradicional são incontornáveis.
Sempre se disse que mais vale um mau acordo do que uma boa sentença. E por isso mesmo, até há poucos anos, a lei determinava que o juiz tinha um especial dever de promover o acordo das partes, podendo adiar as audiências sempre que elas lhe declarassem que estavam a preparar um acordo.
O processo civil era, tipicamente, um processo de partes, em que o juiz tinha uma função de árbitro dos interesses opostos, vinculado a um regime processual apertado, que garantia, a um tempo, a segurança jurídica e vinculação da decisão aos factos dados como provados e às soluções previstas no direito substantivo.
O processo judicial era visto, por todos, como o último recurso, que só chegava a  uma sentença decisória se as partes se não entendessem num acordo.
2. A perversão do processo civil iniciou-se com a desvalorização do princípio dispositivo e o incremento do poder dos juízes, porém com a redução do de promover a realização de acordos das partes.
Os juízes deixaram de ser árbitros em processo de parte, para passarem a ser verdadeiros administradores do processo e não apenas da Justiça.
3. A proliferação das escolhas de direito e a degradação da formação na área do processo civil acabou por conduzir a tentação - que alguns apontaram ao tempo das reformas realizadas neste século - de simplificar o processo civil.
O Código de Processo Civil de 1961 é um código semelhante ao da generalidade dos países com sistemas de raiz romano- germânica, em todos os continentes.
Quando se começou a falar da simplificação do processo civil, tive a oportunidade de chamar a atenção de um ministro - que, por acaso, sabia muito pouco sobre a matéria - para os riscos que mexidas muito profundas envolviam, nomeadamente no quadro das relações económicas de Portugal com o Brasil e os países africanos de língua portuguesa.
A simples eliminação dos agravos foi muito mal recebida pelos advogados do Brasil, de Angola e Moçambique, que defendem interesses de clientes seus em Portugal.
4. Os sucessivos governantes, pouco conhecedores das práticas processuais, foram fazendo alterações sobre alterações que causaram grandes brechas no edifício e multiplicaram as contradições geradas pelo sistema, na base da comparação da jurisprudência antecedente com a que se foi gerando, tomando em consideração os pressupostos das reformas.

Em vez de se dedicar á aceleração dos processos e à produção de decisões, os magistrados tiveram que se dedicar ao estudo das reformas e à implementação de soluções novas, necessariamente mais morosas, em consequência das reformas, passando boa parte do que, antes de cada reforma, era pacífico a ser controverso.
Uma das maiores asneiras, causadora de perda de séculos foi a de cada alteração da lei processual passar a aplicar-se apenas aos processos novos, quando era regra doutrinária essencial a de que as alterações da lei processual deveriam ter aplicação imediata.

A prestigiada Fundação Francisco Manuel dos Santos anunciou agora um novo estudos, realizado por dois simpáticos jóvens, sobre a justiça económica, realizado em cooperação com a Associação Comercial de Lisboa.
Li apenas algumas partes e ouvi os autores do estudo na televisão.
Acho que estamos perante um estudo muito interessante, porque nos dá uma imagem do quem está fora do uso do processo civil e o conhece mal, sintetizando tudo numa critica muito veemente contra o mau funcionamento da Justiça.
O sistema de Justiça está falido há muito tempo e tem que ser substituído por outro, porque este não funciona.
Só que, em minha opinião, se está a procurar resolver o problema por caminhos que conduzirão a efeitos completamente inversos.
O sistema de Justiça está falido, especialmente, porque foi desestabilizado por reformas disparatadas, que ainda não foram digeridas.
Só no plano das falência e das insolvências judiciais temos 3 códigos sucessivos, com dezenas de alterações.
Há processo de falência pendentes sob o regime do Código de Processo Civil de 1961, do Código das Falências e da Recuperação de Empresas e do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, todos com sucessivas alterações.
Para além disso ensaiaram os sucessivos governos reformas judiciárias traumáticas, acabando com tribunais, nalguns casos, em cidades e vilas onde há tribunais desde antes da independência.
Tudo isto era conhecido quando a ministra Paula Teixeira da Cruz tomou posse, pelo que quem anda pelos tribunais há muitos anos compreende perfeitamente o epiteto, aliás carinhoso, que lhe foi colado por António Marinho Pinto, numa noite de talento em que, seguramente, ressuscitou, brincadeiras de infância.

A ministra da Justiça é, seguramente, o contra-poder mais importante para o crescimento do investimento em Portugal, logo a seguir ao ministro das Finanças.
De um ponto de vista tributário, não é minimamente interessante investir em atividades económicas  em  Portugal.
No próximo ano, vai também deixar de ser interessante instalar empresas em Portugal para participar em empresas no estrangeiro (para o que Portugal tem essa ferramenta fabulosa da Empresa na Hora e da Empresa Online) ou para adquirir imóveis no país.
Uma empresa que seja constituída para adquirir vários imóveis não estava obrigada a manter uma escrita mercantil permanente nos anos em que não tivesse movimentos.
Agora, se não aprovar contas anualmente e não apresentar anualmente as devidas declarações fiscais, mesmo que pague os impostos relativos ao património de que seja proprietária, corre o risco de ser dissolvida e de os seus bens serem apropriados por terceiros.
É a própria ministra quem afirma que o país está falido e que a Justiça não funciona.
Nós dizemos apenas que a Justiça não funciona; mas somos obrigados a explicá-lo aos clientes.
A Justiça não  funciona porque o sistema está a ser permanentemente instabilizado e não tem capacidade para digerir as reforma que são realizadas no plano legislativo.
Os grandes códigos, os códigos de processo e os códigos tributários não podem ser mexidos todos os anos e, nalguns casos, várias vezes por ano, sob pena se se conduzir o país à situação de país marginal.
É o que está a acontecer em Portugal onde a situação se degradou, neste plano, a um nível extremo.
Estamos, porém, perante uma difamação da Justiça portuguesa.
Não se pode vir dizer, de um momento para o outro, que o sistema de Justiça não funciona, como se só agora se soubesse ou se se estivesse a fazer alguma coisa para remediar os males acumulados.
Apesar de tudo, o sistema tem magistrados e funcionários excelentes - com quem todos aprendemos muito.
O grande problema de Portugal está em que as reformas são feitas por quem não tem conhecimentos - nem do direito nem da vida - em áreas tão sensiveis como são as do processo.
Nesse sentido se pode dizer que o discurso sobre a Justiça é difamatório da mesma, porque lhe põe culpas que cabem apenas aos políticos.



09 maio 2012

Um artigo de Marinho e Pinto no Jornal de Notícias

Cito-o, com a devida vénia...

Uma barata tonta (1)


Três antigos bastonários da Ordem dos Advogados ligados ao negócio das arbitragens (essa justiça privada e clandestina tão zelosamente promovida pelo actual governo) vieram atacar-me pessoalmente por eu ter criticado a ministra da justiça no programa da SIC «Conversas Improváveis», onde dissera que ela é uma barata tonta e uma pessoa traiçoeira em quem não se pode confiar.

António Pires de Lima, que já não se lembra dos insultos que dirigira a António Guterres, José Sócrates, Alberto Costa e Alberto Martins, veio dizer ao semanário Sol que eu devia «andar a puxar uma carroça em Lisboa». Ele, que há uns anos comparou o Ministério Público à Gestapo de Hitler e à PIDE de Salazar e que antes do 25 de Abril fora advogado de uma das mais ferozes forças de repressão da ditadura, defendeu a actual ministra afirmando que ela «tem feito o possível, o que não pode é fazer milagres». Confessou ainda «ter a maior consideração» por ela e desejou-lhe «boa sorte». Ámen!

Júlio Castro Caldas, sócio do chefe de gabinete da ministra, veio também a público afirmar que ela fora alvo de uma «pública injúria com intenção de ofender» - um acto para o qual nem «o histrionismo de carácter, estimulado pelo talk-show, é atenuação suficiente». Castro Caldas tem motivos para vir em socorro da ministra, pois, além de interesses comuns nas arbitragens, foi nomeado por ela para a Comissão de Revisão do Código de Processo Civil. Também tem motivos para me atacar dessa forma descabelada pois, em tempos, escrevi um artigo sobre um bastonário da OA que fora alvo de uma participação de um juiz por se ter descoberto em plena audiência de julgamento que na véspera ele tinha reunido com as testemunhas do seu cliente, suspeitando o juiz e o advogado da parte contrária que essa reunião fora para as industriar. Claro que Castro Caldas foi absolvido pelo conselho Superior da OA, quando Júdice era bastonário, pois, em regra, esse tipo de comportamento só constituía infracção disciplinar quando visava advogados mais modestos, de preferência da província.

José Miguel Júdice que, enquanto bastonário da OA, tentava, entre outros negócios, vender submarinos ao governo, veio rasgar as vestes em público, dizendo que eu ultrapassei «todos os limiares da boa educação» por ter feito as declarações que fiz «contra uma senhora que está a desempenhar o seu papel da melhor maneira que pode e sabe». Refira-se que Júdice aumentou e muito a sua fama de «bem educado» pela forma elevada como em tempos tratou o bastonário Rogério Alves, o presidente do Conselho Superior, Luís Laureano Santos e o seu vogal, Alberto Jorge Silva, por lhe terem instaurado um processo disciplinar por, em declarações públicas, exigir que o estado consultasse sempre a sua sociedade de advogados. Também contribuiu para a sua láurea de boa educação, a forma elegante como passou a referir-se a outra «senhora», a antiga ministra da justiça Celeste Cardona, depois de o então ministro da defesa, Paulo Portas, ter preterido o cliente do escritório de Júdice na compra dos tais submarinos.

Júdice, que se demitiu do PSD para ir ganhar dinheiro com José Sócrates e António Costa (de quem foi mandatário à Câmara de Lisboa) quando Luís Marques Mendes era presidente do partido, terá agora de fazer muitos mais exorcismos públicos como este para voltar a estar em condições de facturar como na altura em que Durão Barroso e Santana Lopes chefiaram o governo. Recorde-se que, nesse tempo, o escritório de Júdice recebia, só de uma empresa pública, dois milhões de euros por mês (um milhão em cada 15 dias), supostamente, por assessoria jurídica. Por outro lado, a sua boa formação está lapidarmente evidenciada numa entrevista ao JN, em que, pronunciando-se sobre a Zona Ribeirinha do Tejo, para cuja administração José Sócrates acabava de o nomear presidente, disse: «Aí sinto-me um ginecologista. Trabalho onde espero que muitos se divirtam».

Enfim, são três antigos bastonários que, por inconfessados interesses pessoais, não hesitam em atacar publicamente o bastonário da OA em exercício, unicamente para cair nas boas graças do poder político. Estranha noção de dignidade, a deles.

António Marinho e Pinto

21 abril 2012

Advogada rouba 15 idosas na rua


É espantoso. Se não estivesse escrito no "Correio da Manhã",  que é um jornal sério, dirigido por um amigo meu, o Octávio, eu não acreditava que pudesse ser verdade.
O país continua a ser dos melhores do Mundo.
Mas não vai a lado nenhum pelo caminho que levam.
Já tinha visto advogadas a "atacar" no Elefante Branco. Mas não imaginava que já pudesse haver advogadas - ou advogados - a roubar no sentido concreto do termo.

15 março 2012

A matança dos credores em Portugal


Uma das leis mais aberrantes que produziram em Portugal é o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que aprova  um novo regime jurídico da dissolução e da liquidação de entidades comerciais.

                O governo de José Sócrates – ao contrário de todos os outros governos socialistas -  primou por uma ação inqualificável de destruição do sistema jurídico português, criando janelas que o tornaram completamente inseguro e que, para além disso, permite todo o tipo de vigarices.
            Defendi, durante anos, uma empresa espanhola que tinha um litigio com o Estado português com valor de milhões de euros. A defesa que desenvolvemos nesse processo assentava, no essencial, na demonstração de um erro de cálculo que, porém, não afetava a essência do que era reclamado pela administração tributária.
            Quando cheguei ao julgamento fiquei surpreendido pela ausência dos representantes da empresa que eu defendi. Mas fiquei ainda mais surpreendido com outra coisa: a sociedade em causa tinha sido dissolvida, pelo que perdera a personalidade jurídica e a personalidade judiciária.
            Claro que não recebi os honorários que me eram devidos e que seriam menos de uma dezena de milhar de euros. Mas ao Estado não recebeu milhões.
            Esta semana fui consultado por um empresário brasileiro, sócio de uma sociedade comercial portuguesa com créditos e ativos em Portugal superiores a 2 milhões de euros.
            O objetivo era, após um processo de paciência para tentar obter o pagamento de créditos por via negocial, estudar o recurso a meios judiciais para a defesa dos direitos dessa sociedade.
            Quando acedi ao site http://publicaçoes.mj.pt constatei que a sociedade tinha sido dissolvida e liquidada, ainda não se sabe bem como nem porquê.
            A sociedade em causa tem um capital próximo dos 250.000 € e opera no mercado  imobiliário, tendo ativos mas não tendo realizado movimentos nos últimos 3 anos.
            Provavelmente – coisa que ainda não verificamos – o seu contabilista não depositou as contas dos últimos dois anos, por não se terem registado movimentos.
            E provavelmente a administração tributária ou algum dos devedores, alegando a verificação de alguns dos pressupostos do  referido Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março (ver pag. 2328-84) foi requerer um procedimento administrativo de dissolução.
            É absolutamente incrível, nestes tempos em que a informática permite ter o controlo de toda a informação, a possibilidade de dissolução de uma sociedade comercial que tem credores e que tem ativos, mesmo que, eventualmente, ela tenha cometido alguma falta em matéria de obrigações declaratórias.
            Mais incrível é a simples hipótese de os devedores poderem «matar» os credores, fazendo-os desaparecer do mundo jurídico se eles forem tolerantes e… esperarem.
            Os perigos emergentes do sobredito Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março podem assumir especial gravidade relativamente a sociedades gestoras de património imobiliário familiar amortizado.
            Nas últimas décadas do seculo passado muitos advogados e consultores  portugueses aconselhavam os estrangeiros que adquirissem propriedades em Portugal a titulares a aquisição e a administração em nome de sociedades comerciais, assumindo-se a prestação de contas de tais sociedades como uma rotina, porque, na realidade elas não tinham movimentos.
            O que aconselhamos às pessoas nessas situações é que verifiquem no referido site http://publicaçoes.mj.pt se as sociedades ainda existem.
            Também não lhes faz mal que verifiquem se ainda são donos dos seus imóveis em Portugal.
            Infelizmente, o mesmo governo de José Sócrates também destruiu a segurança do sistema de registo predial, passando a ser possível operar um registo de transmissão a propriedade de um imóvel com uma simples mensagem de telefax.
            Isso mesmo: não é por documento assinado eletronicamente. É mesmo por telefax.
            Gaste uma pequena importância por ano e veja, pelo menos mensalmente, a certidão permanente dos seus prédios.

26 janeiro 2012

A propósito das «presenças consulares»



         Muito se tem falado, nos últimos tempos, na figuras das presenças consulares  como uma forma de, a um tempo, permitir ao Estado a poupança de recursos e, de outro lado manter um nível mínimo de serviços aos emigrantes portugueses.
            Estabelece o artº 2º do Regulamento Consular aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2009, de 31 de Março, que «os postos e as secções consulares podem, sempre que se justifique e mediante autorização do Ministro dos Negócios Estrangeiros, instituir presenças consulares.»
            A primeira conclusão a que esta leitura nos obriga é a de que a iniciativa para as «presenças consulares» compete aos titulares desses tipos de postos de carreira, carecendo de autorização do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
            Não pode haver «presenças consulares» forçadas, exigindo a lei que elas seja instituídas, por iniciativa dos postos consulares ou das secções consulares, sempre que se justifique.
            Lendo o Regulamento Consular e a Convenção de Viena sobre  Relações Consulares, aprovada por adesão pelo Decreto-Lei n.º 183/72, de 30 de Maio, não nos quedam quaisquer dúvidas de que as «presenças consulares» só podem se adotadas em quadros de emergência e pelos  titulares dos postos de carreira, no quadro da sua própria jurisdição e com os limites impostos pela convenção e, naturalmente, pela lei.
            As funções consulares são exercidas, nos termos do artº 3º da Convenção, «por postos consulares» ou por «missões diplomáticas», sendo o seu conteúdo definido pelo artº 5º da mesma.
            Um posto consular não pode ser estabelecido no território do Estado recetor sem seu consentimento, devendo a sede, a sua classe e a área da sua jurisdição ser fixadas pelo Estado representado  e submetidas a aprovação do Estado recetor.
            Nos termos do artº 4º  «o Estado que envia não poderá modificar posteriormente a sede do posto consular, a sua classe ou a sua área de jurisdição consular sem o consentimento do Estado recetor.»  E diz, expressamente o nº 4 desse artigo: «O consentimento do Estado receptor será também necessário se um consulado-geral ou um consulado desejarem abrir um vice-consulado ou uma agência consular numa localidade diferente daquela onde se situa o próprio posto consular.»
            O artº 6º do Regulamento Consular português estabelece que «as presenças consulares são realizadas dentro da área de jurisdição do posto consular que as institui e visam assegurar o apoio consular a determinada comunidade que dele objetivamente careça, através da deslocação periódica de um ou vários funcionários consulares a determinado local previamente estabelecido.»
            Chegados aqui, importa questionar o que deve entender-se por «apoio consular» e que apoio consular pode ser integrado no quadro de carência que permite ao responsável do posto pedir autorização para o estabelecimento de uma «presença consular».
            Não temos quais dúvidas de que se integram nesse quadro todas as situações que justifiquem o apoio aos portugueses em casos de tragédia ou de cataclismo.
  O apoio consular justificativo de presenças consulares pode justificar-se para os quadros previsto no Regulamento para a ajuda aos portugueses residentes no estrangeiro, nomeadamente para (citamos o artº 40º e seguintes do Regulamento):
 a) Prestação de apoio a portugueses em dificuldade, como nos casos de prisão ou de detenção;
b) Prestação de assistência no caso de sinistro, equivalente ao apoio recebido em Portugal, procurando assegurar a assistência médica necessária e tomando as demais providências adequadas à situação;
c) Prestação de socorros no caso de catástrofe natural ou de graves perturbações de ordem civil, adotando as medidas apropriadas aos acontecimentos, como a evacuação de cidadãos portugueses, sempre que tal se justifique;
d) Salvaguarda de menores e de outros incapazes que se encontrem desprotegidos e se mostrem em perigo, intervindo na tomada de providências cautelares e na organização da tutela e da curatela;
e) Prestação de apoio, quando necessário, aos familiares de portugueses falecidos no estrangeiro, acompanhando-os nas diligências a realizar, acautelando os interesses dos presumíveis herdeiros e assegurando as diligências adequadas à transferência de espólios;
f) Acompanhamento dos processos de repatriação de portugueses no estrangeiro, em particular nos casos de expulsão, de forma a prestar o aconselhamento necessário e a garantir a defesa dos direitos dos cidadãos nacionais;
g) Emissão de documentos de identificação e de viagem;
h) Apoio social, jurídico ou administrativo possível e adequado, de modo a garantir a defesa e a proteção dos direitos dos portugueses;
i) Assistência a idosos, reformados, desempregados e outros desprotegidos;
j) Diligências para localização de portugueses desaparecidos no estrangeiro;
l) Assistência à navegação marítima e à aeronáutica civil. »
Nem sequer para a assistência a presos no estrangeiro se considera admissível o estabelecimento de presenças consulares, a não se que houvesse muitos criminosos.

O exercício de funções consulares é regulado pela Convenção de Viena, que impões aos Estados hospedeiros especiais obrigações no que se refere à segurança e à proteção dos agentes e dos funcionários consulares.
Tal proteção está associada a um posto concreto, com um preciso endereço físico, que o Estado que envia o representante  não só não pode alterar como a quem não pode atribuir outra jurisdição sem o consentimento do Estado recetor.
Óbvia e inequívoca é a conclusão de que as «presenças consulares» sem prejuízo das imunidades pessoais dos funcionários, não gozam de qualquer imunidade ou proteção, nomeadamente no que se refere a instalações.
Um outro problema, que não é subestimável, é o problema tributário.
Sendo indiscutível que os postos consulares podem cobrar taxas e emolumentos nas instalações consulares acreditadas, parece-nos não haver dúvidas de que não o podem fazer fora delas, sem se sujeitarem aos regimes tributários locais, na base do pressuposto de que a prestação de serviços sujeitos a taxas ou emolumentos tem que processar-se nas instalações acreditadas.
Não temos quaisquer dúvidas de que as comunicações de dados processadas através das instalações consulares não só são lícitas como são protegidas. Mas o mesmo já não ocorre no que se refere às comunicações de dados processadas fora das instalações consulares, sobretudo se envolverem transmissão de dados pessoais de cidadãos do país hospedeiro para país estrangeiro, mesmo que esse  tenha um posto consular acreditado.
Os países acreditados gozam de um  conjunto de proteções no que se refere aos postos consulares e diplomáticos acreditados em terceiros Estados. Mas perdem essas proteções – e podem até os seus agentes incorrer em crimes – se realizarem actos da mesma natureza fora da repartição consular.
Embora tenha deixado de ter validade plena a velha conceção segundo a qual o território de um consulado ou de um embaixada é  e deve ser tratado como território do país acreditado, continua válida a regra de que os agentes de um país estrangeiro não podem ultrapassar os limites impostos por tal conceção, não gozando, de modo algum, de liberdade plena no território do país hospedeiro. Só para dar um exemplo: um chefe de posto consular pode lavrar um testamento dentro do consulado; mas não pode fazê-lo fora do consulado, pois não está autorizado a praticar atos notariais no território do país recetor.
Afigura-se, desde logo, de legalidade mais do que duvidosa a possibilidade de se estabelecerem presenças consulares para a recolha de dados para emissão de cartões de cidadão ou de passaportes foram dos postos  consulares.
Não temos dúvidas de que nalguns países o uso de equipamentos adequados à transmissão de dados pessoais é absolutamente ilegal, desde que os mesmos sejam processados foram das repartições consulares. Relevam nesse grupo os países que proíbem a dupla nacionalidade ou que, aliás à semelhança de Portugal, afirmem o princípio da prevalência da qualidade do nacional por relação ao país, não relevando as relações com outros Estados.
Mas nem sequer é aí que e encontra o ponto mais fraco do problema das presenças consulares, tal como ele vem sendo equacionado.
Como se sabe, prestam-se nos consulados serviços de registo civil. A competência para a prática de atos de registo civil, que por regra compete aos conservadores de registo civil em Portugal, é exclusiva dos titulares dos postos consulares,  ou seja dos cônsules gerais,  dos cônsules e dos chefes das repartições consulares e dos  cônsules-adjuntos por eles designados.
É certo que na reforma de 2009 foram introduzidas no Regulamento Consular duas regras que permitem ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e aos próprios cônsules nomear funcionários a quem sejam atribuídas competências na área do registo civil, com exceção do casamento.
Parece-nos óbvio que o Ministro só pode nomear para o exercício de tais competências funcionários que tenham capacidade técnica para as desenvolver. Não conhecemos até agora nenhuma despacho exercendo essa competência.
As funções de registo civil são daquelas que cabem no núcleo essencial da representação consular, até porque podem suscitar uma complexa conflitualidade, nas mais variadas áreas.
Parece-nos, em síntese, que as «presenças consulares», a respeitar-se o espírito e a letra do Regulamento Consular, só poderão ser estabelecidas por iniciativa dos titulares dos postos e que são de duvidosa legalidade se implicarem a prática de atos notariais ou de registo civil fora do posto consular.
A nosso ver – e é nesse sentido toda a doutrina – a função  de «agir na qualidade de notário e de conservador do registo civil e exercer funções similares, assim como certas funções de carácter administrativo, desde que não contrariem as leis e os regulamentos do Estado recetor» a que se refere o artº 5º, al. i) da Convenção de Viena é uma função inerente ao posto, nessa perspetiva de repartição do Estado emissor, que não pode desenvolver-se numa espécie de offshore, em concorrência, no mesmo mercado, com o Estado recetor.
Daí que me pareça que a grande utilidade das presenças consulares é de natureza social e informativa e que a mesma se deve desenvolver em cooperação com a sociedade civil.
Ultrapassar essas barreiras será abrir portas, pela certa, a conflitos indesejáveis.
Ou alguém tem dúvidas de que as maquinazinhas de recolha de dados biométricos poderão ser apreendidas, se forem usadas fora dos consulados, nos países em que tais dados são especialmente protegidos?