29 abril 2011

Assim vai a Justiça

Um comentava, de forma excêntrica, os seus processos em artigos de jornal, outro esquecia-se de escrever as sentenças e os casos prescreviam. Eram juízes e, tal como aconteceu a outros 11, foram banidos da profissão

Sónia Graça
NESTE momento, são três os juízes em risco de serem afastados dos tribunais. Somam-se aos 13 que, nos últimos dez anos, o Conselho Superior de Magistratura (CSM) expulsou da profissão para sempre. O motivo foi, em todos os casos, o mesmo: trabalhavam muito pouco.
Em Maio do ano passado, o CSM aplicou a pena de aposentação compulsiva a um magistrado – sanção que ainda não transitou em julgado – e está neste momento a avaliar a aptidão de outros dois juízes para decidir se se mantêm ou não em funções. Os três (dois homens e uma mulher) foram classificados com ‘medíocre’, na avaliação feita ao seu trabalho – a nota mais baixa que os juízes podem ter.
Nos últimos dez anos, o Conselho decretou outras 13 penas de aposentação compulsiva – a mais gravosa a seguir à demissão -, todas motivadas por fraca produtividade. Dos 13 expulsos, só um era mulher.
«Ao contrário do que é voz corrente em muitos sectores, o Conselho consegue detectar casos de produtividade insatisfatória, age disciplinarmente sobre essas pessoas e aplica-lhes penas expulsivas em quantidade considerável» – sublinha Manuel Ramos Soares, secretáriogeral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. «Que outras profissões do sector público, com este grau de exigência – idêntico ao de médicos e professores universitários, por exemplo -, têm números comparáveis a estes? – questiona aquele magistrado. E lembra que Portugal é o único país da União Europeia onde os juízes são alvo de inspecções periódicas, de quatro em quatro anos: «O sistema toma a iniciativa, não fica à espera de queixas».
E a aposentação compulsiva não é a única sanção para os que trabalham pouco: «Estes 13 casos de expulsão representam apenas uma parcela dos juízes medíocres. Há muitos outros que foram suspensos, ficaram sem vencimento e sem poderem trabalhar entre seis meses a um ano. Isto é pouco?
Sempre que um juiz ‘chumba’ no exame, ficando-se pelo ‘medíocre’ (numa escala que prossegue com ’suficiente’, ‘bom’, ‘bom com distinção’ e ‘muito bom’), soa o alarme: o magistrado é suspenso preventivamente e é aberto um inquérito que acaba, regra geral, convertido em processo disciplinar.
Que critérios podem, afinal, condenar um magistrado? As regras são claras no Estatuto dos Magistrados Judiciais: se não revelar aptidão para o cargo, isto é, capacidade humana, preparação técnica e adaptação ao serviço (leia-se, produtividade e volume de serviço), arrisca a expulsão. E a qualidade das decisões? «O Conselho não pode decidir se um juiz julgou bem ou mal, mas sim se o fez com qualidade, isto é, se a sentença está fundamentada, com critério, ou se o fez por capricho», responde Ramos Soares.
«Os inspectores são juízes-desembargadores com muita experiência, conhecem bem as comarcas e as dificuldades inerentes. Têm noção do que um juiz normal consegue fazer, até porque inspeccionam juízes da mesma zona e têm parâmetros de comparação. Se há um que consegue fazer 200 sentenças por ano, por que razão o colega só consegue fazer 20?» – explica Duro Mateus, juiz desembargador e chefe de gabinete do vice-presidente do CSM, acrescentando que, normalmente, ao juiz mal classificado é dada uma segunda oportunidade: «Inicialmente, é suspenso ou transferido para outro tribunal».
Ramos Soares recorda o caso de uma juíza vítima de cancro da mama, que venceu duas batalhas: «Nunca meteu baixa, e, por isso, andou dois anos a trabalhar em sofrimento. Não podia ter mais que ‘medíocre’. Mas o CSM não a mandou embora. Venceu a doença, recuperou a produtividade e continua a trabalhar».
Mas o contrário também existe: «Lembro-me de um juiz de Vila Nova de Gaia com problemas de produtividade detectados há 15 anos. O Conselho deu-lhe várias oportunidades, mas ele nunca melhorou e foi expulso com quase 60 anos. No gabinete, quando os inspectores desviaram o armário, caíram pilhas de processos que já estavam prescritos, tal era o descontrolo». Nos arquivos do CSM, não faltam histórias de negligência, preguiça, distracção e até indisciplina.

O indeciso
Quando visitaram, em 2000, o gabinete de um juiz com 17 anos de serviço, os inspectores encontraram 1.775 processos a aguardar despacho, muitos com conclusão aberta desde Setembro de 1996 e mesmo antes. Nesse juízo, havia então 2.844 processos parados, muito mais do dobro dos que existiam quando o magistrado ali entrara.
Isento, cordial, idóneo, sem cadastro, os inspectores não compreendiam como é que um magistrado que trabalhava diariamente muito para além das horas normais de expediente, e ainda aos sábados, domingos, feriados e até nas férias judiciais, não produzia mais. Descobriram depois: faltava-lhe método e capacidade de decisão.
Houve casos em que chegou a realizar os julgamentos, mas não proferia as sentenças, deixando essa tarefa para os colegas. E quando as elaborava, proferia-as fora do prazo, com vários meses de atraso. Em três anos, fez 41 julgamentos e deu apenas 15 sentenças. Num deles, fez apenas um julgamento.
O juiz não se emendou e, na inspecção seguinte, em 2004, voltou a ser alvo de um processo disciplinar à custa de um novo ‘medíocre’. Não voltou a ter perdão.

O excêntrico
Imagine-se um juiz que não aceita trabalhar se não tiver gabinete exclusivo, que adopta sistematicamente um estilo agressivo e uma linguagem ofensiva e de mau gosto – bem patente, aliás, nas crónicas que escrevia num jornal locai «Foi aí que este porcalhão violou a jovem. (…) Descobriu-se a careca deste homem nojento, que era mais asqueroso do que os porcos vendidos no talho dele» – escreveu então, sobre um processo que julgou.
O magistrado da comarca do Seixal dava nas vistas, mas não só por trabalhar pouco. Tinha pouco mais de seis anos de serviço, duas inspecções em que nunca fora além do ’suficiente’, na primeira, e do ‘medíocre’, na segunda, e ainda três processos disciplinares que lhe tinham custado uma suspensão e uma multa
O mau relacionamento com os funcionários era flagrante. Certa vez, em plena sala de audiências, referiu-se a um nestes termos: «O senhor que estava com dificuldades psicomotoras, então diga lá o que pretende».
Mesmo sabendo que atravessava um divórcio litigioso e um luto familiar recente, os inspectores não tiveram dúvidas na hora de fazer contas. É que o juiz tinha sempre mais de 500 processos por despachar no gabinete e eram recorrentes as situações em que os processos aguardavam semanas, apenas para que fossem assinados ofícios, editais ou mandados de detenção.
As actas nunca eram assinadas a tempo. O magistrado chegava a reter processos durante meses a fio no gabinete, sem assinar as actas, que costumava emendai; não por conterem erros, mas por questões de pormenor, sem qualquer interesse – só porque não gostava da redacção das minutas do programa informático Habilus, utilizadas pelos funcionários (que eram obrigados a trocar, por exemplo, ‘9:30′ por ‘9h30m’).
À custa disso, no seu juízo pendiam 4.900 processos à data da inspecção. As sentenças, limitava-se quase sempre a ditá-las por apontamento, sem as depositar em tempo porque não as escrevia. Mesmo quando as entregava, continuava a haver actas por assinar. Mas não foi só isso que ‘chocou’ os inspectores neste juiz peculiar. Em 2006, o magistrado já tinha centenas de julgamentos marcados para 2009, 2010 e até para 2011. E mesmo quando a data era marcada por si ou por colegas antecessores, frequentemente voltava a ser adiada, invocando um elevado número de diligências (que nunca explicava), outras audiências em curso ou então o adiantado da hora. E a falta de critério era notória: num mês, marcava para 2010 e, no mês seguinte, para 2008.

O distraído
O magistrado colocado em Almada desde 2000, era bemeducado, cordial e trabalhador, e primava pelas sentenças bem elaboradas. Porém, distraído e inseguro, tinha um hábito fatal: lia as sentenças apenas por apontamento, sem que, de imediato ou em curto prazo, as escrevesse e depositasse na secretaria do tribunal.
Nalguns casos, decorreu mais de um ano entre a leitura e o seu depósito. À data da inspecção, em Novembro de 2004, estavam por depositar 182 sentenças deste juiz algumas,de julgamentos feitos em 2000 e 2001. Resultado: como as sentenças eram na prática inexistentes, os crimes e contra-ordenações em causa extinguiam-se e os casos prescreviam.
O seu mérito nunca foi, de resto, elogiado pelo Conselho: numa primeira inspecção teve ’suficiente’, quatro anos depois resvalou para o ‘medíocre’. Ainda reclamou uma segunda oportunidade, mas os inspectores renderam-se às evidências: no seu gabinete acumulavam-se, em Outubro de 2004, cerca de 530 processos. Outros tantos perderam-se e não foram sequer localizados no momento da inspecção, tal a desorganização do juiz, que admitiu não saber o destino de muitos processos, nem sequer se a sentença fora lida.
Nem mesmo com a ajuda de juízas auxiliares colocadas de propósito no tribunal para colmatarem as dificuldades, o magistrado deu o salto: os casos pendentes no seu juízo passaram de 1.500 em 2000 (ano em que ali foi colocado) para 3.100 em finais de 2003. Os processos paravam meses e anos por causa de gestos tão simples como apreciar um pedido de pagamento de multa em prestação ou conceder apoio judiciário.
Na sua defesa, alegou que fora prejudicado pelo facto de ter tido uma avaria no computador o que o obrigou a refazer as sentenças. As más condições do tribunal também não ajudavam, havendo só quatro salas de audiências, tendo muitas de ser realizadas no seu gabinete. O mais curioso é que ao magistrado parecia não faltar dedicação: permanecia no tribunal madrugada fora.
SOL | sexta-feira, 29 Abril 2011