24 dezembro 2010

Volumoso desvio de fundos nos depósitos judiciais

Notícia do Público:

«O Ministério da Justiça usou em 2008 e no ano passado 326,1 milhões de euros, que estavam afectos a processos judiciais e que, por isso, não lhe pertenciam, para tapar o buraco das contas desses dois anos, sem garantir as responsabilidades perante terceiros. A situação foi detectada numa auditoria do Tribunal de Contas (TC) ao Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça (IGFIJ), que gere os recursos do ministério, divulgada recentemente.

O uso dos 326 milhões levou o TC a recomendar que aquelas verbas sejam registadas de forma correcta
No documento, o TC critica o facto de o IGFIJ contabilizar 160 milhões de euros em 2008 e 166,1 milhões em 2009, dos chamados depósitos autónomos - rendas, cauções e outros quantias afectas a um determinado processo judicial - como receitas extraordinárias, sem reflectir as correspondentes responsabilidades perantes terceiros. O tribunal lembra que foram violadas vários princípios da contabilidade pública e acrescenta que os membros do Conselho Directivo do IGFIJ que, em 2008 e 2009, aprovaram as contas do organismo, sem discordância das mesmas, são responsáveis por estas irregularidades, que "eventualmente configuram infracções financeiras sancionatórias". Isso significa, que estes responsáveis podem ser multados pelo TC.
Também o fiscal único do IGFIJ alerta que "a contabilização da receita extraordinária de depósitos autónomos deve ser conjugada com a devida comprovação de que as responsabilidades estão adequadamente expressas e suportadas por património à guarda do IGFIJ". Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça garante que tem pago todos os reembolsos pedidos, "de acordo com as decisões dos tribunais". Isto porque é necessária uma decisão judicial para que as verbas sejam pagas aos respectivos donos.
Contudo, esta garantia e a indicação de que as verbas devolvidas serão incorporadas nas contas do IGFIJ deste ano desmentem uma afirmação do ex-presidente do instituto, João Pisco de Castro, que em esclarecimentos à Direcção-Geral do Orçamento afirmava que os 160 milhões de euros resultavam de uma estimativa das perdas e prescrições dos montantes afectos aos processos judiciais até 31 de Dezembro de 2008. "Trata-se, portanto, de receitas entradas no sistema judicial que por via da prescrição ou da destruição dos processos nunca serão reclamados por nenhuma entidade", justificava então Pisco de Castro.
Ao TC, nunca foram mostrados os estudos, pareceres e outros documentos auxiliares que terão servido de base a esta estimativa e ao despacho conjunto do ex-secretário de Estado Adjunto e da Justiça, Conde Rodrigues (que entretanto transitou para o Ministério da Administração Interna) e do secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, Emanuel dos Santos (que se mantém nas mesmas funções) que permitiram gastar as verbas. Isso mesmo se lê na auditoria, precisando-se que os mesmos "foram solicitados por ofício ao secretário de Estado da Justiça e da Modernização Judiciária [José Magalhães], que reencaminhou para o ministro da Justiça [Alberto Martins], que actualmente tem a tutela do IGFIJ, com conhecimento ao secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, não tendo o TC obtido resposta".


Reembolsos garantidos
Confrontado com o porquê desta recusa, o gabinete de Alberto Martins garantiu que "todos os elementos disponíveis sobre esta matéria foram fornecidos pelo IGFIJ ao Tribunal de Contas", uma versão desmentida por uma porta-voz da instituição.
O MJ recusa-se a adiantar o valor dos reembolsos. "Estas responsabilidades, que não tinham ainda sido apuradas com rigor nos exercícios anteriores, foram identificadas no decorrer de 2010, recorrendo ao sistema informático SICJ, que processa os fluxos financeiros associados aos processos judiciais", alega o MJ. E completa: "Esclarece-se ainda que a liquidez necessária para o reembolsos dos depósitos autónomos devidos nestes anos nunca esteve comprometida. Apenas não estavam correctamente identificadas as responsabilidades futuras". O ministério não responde, contudo, à pergunta do PÚBLICO que pedia um valor dos montantes reembolsados.»

23 dezembro 2010

Carta aberta à minha cliente Manuela Hilarina Fernandes

Minha Estimada Manuela Hilarina Fernandes:

Quero pedir-lhe desculpa, porque falhou tudo.
Falhou a promessa que lhe fiz em Agosto e o seu sonho de Vascos da Gama, Albuquerques, também esse Camões que lhe corre nas veias, e
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando (...)
Falhou tudo, a começar pelo respeito, que deveriam ter por si, que não por mim; e sobretudo pela Pátria, cada vez mais engolida por políticos incompetentes e funcionários imbecis.
Eu sei - confesso-o humilde e envergonhadamente - que lhe garanti que esta coisa que sobra do Portugal, com que você sonhou,  ainda era um país decente.
Lembro-me com hoje do que lhe disse, suportado nas leis, a começar pela Constituição, que assegura aos portugueses o respeito pelos direitos fundamentais.
É verdade que lhe garanti que no dia em que lhe fosse reconhecida a qualidade de cidadã portuguesa, você Manuela Hilarina Fernandes, tinha o direito de pedir um cartão de cidadão e um passaporte português.
Tenho que reconhecer que falhei; e tenho que lhe dar uma explicação, pedindo-lhe que acredite que sou um homem sério e que, se a seriedade falta, é ao País, que não a mim.
Você, Manuela Hilarina, é portuguesa como eu, portuguesa de origem, desde o dia 24 de Agosto de 2010. E deveria ter um cartão de cidadão como eu.
Você é portuguesa como eu ou como um senhor que passa por Ministro dos Negócios Estrangeiros. E vive escondida em Londres, abandonada e agredida pelos que governam a nossa Pátria, conspurcando-lhe a honra, como é próprio de quem não reconhece os documentos emitido sob a sua égide.
Juro-lhe que nunca me passou pela cabeça a simples hipótese de passarmos um Natal tão triste, consigo, portuguesa como eu, escondida, à deriva, sem documentos, como se fosse uma pessoa inexistente. Se eu alguma vez imaginasse que esta canalha que nos governa poderia ir tão longe no desrespeito pelas suas próprias leis, seguramente que lhe teria sugerido que adiasse esse sonho de Gamas, de Albuquerques, Franciscos de Almeida e Camões...
Além disso, o que a tudo enfim me obriga,
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar inda por dizer.
Mas, porque nisto a ordens leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro tratarei da larga terra,
Depois direi da sanguinosa guerra.
Você não é uma oportunista.
Você optou por procurar a sua História e o seu Destino, por deixar uma pátria e escolher outra, a sua, a do seu nome, a dos seus pais e dos seus antepassados, no fim de contas a do seu coração.
Talvez eu devesse ter avisado que este já não é o Portugal dos Gamas e dos Albuquerques, que ninguém, neste recanto, onde restam as sobras dos que se semearam pelo Mundo,  entende o que é isso de ser português, à semelhança dos desenhos de um Camões, que eles nunca leram e, pior do que isso, não sabem ler.
Talvez eu devesse dizer-lhe que este Portugal são os restos de um país e de uma nação.
Cometi o pecado grave de não ter querido partir o seu sonho. Mas juro-lhe que o fiz, apenas, porque nunca imaginei que esta canalha, de que dependemos,  pudesse levar tão longe a sua arrogância e a sua incompentência.
Você, Manuela Hilarina é portuguesa como eu. Disso pode estar segura.
Mas você não existe embora tenha um registo de nascimento que a dá como viva, porque lhe negam a sua identidade, não aceitando entregar-lhe um cartão de cidadão com base no referido registo e no mesmo documento identificador que o permitiu.
O Consulado de Portugal em Londres sabe que você Manuela Hilarina é portuguesa e deixou de ser indiana. Mas o que tem feito não é mais do que criar condições para que você seja expulsa para a Ìndia, que deixou de ser a sua Pátria, por mais que continue a valer o cheiro do chão de Goa que a viu nascer.
Portugal tem tribunais e eu também lhe transmiti uma ideia errada do que são os tribunais portugueses.
E tem um processo especial, de natureza sumária, visando a intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias.
É verdade que eu lhe disse que, perante uma situação tão grave, o tribunal não deixaria de adotar uma decisão num prazo muito curto. E disse isso porque a lei fala em celeridade; e celeridade para quem não existe,  porque não tem documentos,  é ontem.
Eu não sou mentiroso, Manuela Hilarina Fernandes. Juro-lhe que não sou.
Mas a lei do nosso país é...
E por isso, Manuela Hilarina, você está escondida num canto de Londres, portuguesa como eu ou como o tipo que passa por Ministro e que é pessoalmente o responsável pela sua inexistência e pela crise do seu sonho. Foi ele quem mandou contestar em juizo o seu pedido de um simples cartão de cidadão.
Nem os fascistas tiveram alguma vez a ousadia de fazer isso.
Tenho a certeza que este é o pior Natal das nossas vidas.
Mas não vamos desfalecer.
Vou acompanhá-la e vou seguiu o seu exemplo de reler Camões, à espera que a borrasca passe e que toda esta canalha tenha o destino que os deuses traçaram para quem não merece governar a nobre gente.
 
Miguel Reis

12 novembro 2010

A falência financeira da justiça

O custo da Justiça multiplicou-se várias vezes em Portugal, em razão de uma administração ruinosa conduzida pelos sucessivos ministérios.
O sistema deveria ser lucrativo, porque as taxas são altas e os tribunais, que prestavam melhor serviço do que hoje, sempre estiveram habituados a uma grande contenção de despesas.
A ressurreição de um certo fontismo e a colocação da Justiça ao serviço da construção civil - tudo aliado a uma informatização patética, que custou milhões e se limitou a acrescenar um processo digital aos processos tradicionais - obrigou o Ministério a mexer nos salários dos juizes.
Os primeiros resultados estão à vista,  num despacho exemplar, que promete multiplicar-se.

31 outubro 2010

Este país está doido...

O governo apresentou à Assembleia da República uma proposta de lei que visa a simplificação legislativa, reduzindo o número de leis...


Aparentemente trata-se de uma coisa simples: revogam-se os diplomas e ... pronto.

Lê-se no preâmbulo da Proposta de Lei nº 40/XI:

«Com a adopção do programa SIMPLEGIS, que faz parte do SIMPLEX, o XVIII Governo Constitucional assumiu o compromisso de concretizar diversas medidas de simplificação legislativa, com três objectivos essenciais: i) simplificar a legislação, com menos leis, ii) garantir às pessoas e empresas mais acesso à legislação e iii) melhorar a aplicação das leis, para que estas possam atingir mais eficazmente os objectivos que levaram à sua aprovação.


Para simplificar a legislação, com menos leis, o SIMPLEGIS prevê, a título de exemplo, i) que, em 2010, se revoguem mais decretos-leis e decretos regulamentares que os aprovados, assim garantindo que o Governo legisle criteriosamente e apenas quando é necessário, ii) a revogação expressa, em 2010, de pelo menos 300 leis, decretos-leis e decretos regulamentares que já não são aplicados mas permanecem formalmente em vigor, ii) assegurar a emissão de menos declarações de rectificação de diplomas publicados, assim garantindo uma redução do número de erros cometidos na sua publicação, para que possa haver confiança no texto publicado em Diário da República e iii) a adopção de uma política de «atraso ZERO» na transposição de directivas da União Europeia (UE) até ao final do primeiro semestre de 2011, para evitar a transposição de directivas fora de prazo.»

O artº 1º nº 1 afirma: «1 - A presente lei tem por objecto a revogação expressa de decretos-leis publicados no ano de 1975.»

Em vez de facilitar o trabalho dos juristas, este tipo de diplomas vem criar dificuldades adicionais porque podem ser diferentes as consequências do apagão. Há diplomas cuja revogação tem, como único efeito a sua não aplicabilidade no futuro. Haverá, porém outros, cuja revogação implica, por natureza a repristinação das normas por ele revogadas.

Poi isso mesmo, em vez de estabilizar o sistema jurídico, esta proposta anormal vem criar problemas adicionais, por enquanto imprevisíveis.

Ver a proposta que

04 outubro 2010

O debate dos candidatos

Vale a pena ouvir o debate entre os candidatos a bastonário da Ordem dos Advogados editada pela TV Justiça, a que pode aceder-se pelos endereços que abaixo reproduzo:


http://www.justicatv.com/index.php?p=349

http://www.justicatv.com/index.php?p=350

http://www.justicatv.com/index.php?p=351

António Marinho e Pinto é, na minha opinião, o candidato que melhor garante a defesa dos interesses da advocacia.

A tese de que é importante de que haja muitos dirigentes, defendida por Fragoso Marques, favorece o aproveitamento da Ordem pelos advogados que não advogam e que, por isso mesmo, têm tempo para se dedicar ao «serviço da Ordem», que não é cívico mas, bem pelo contrário, visa a defesa de interesses específicos, de natureza económica, de advogados que vivem à conta do orçamento.

A chamada «formação» tem permitido, sem nenhuma utilidade, distribuir milhões de euros por advogados que não têm clientes.

30 setembro 2010

A placa do deputado

Lê-se no Diário de Viseu:

O deputado Paulo Barradas, eleito nas listas do PS no círculo de Viseu, decidiu retirar uma placa que indicava o local onde tem um escritório, depois de fotografias da mesma terem gerado polémica nas redes sociais da Internet.
Com o objectivo de permitir um melhor atendimento às pessoas que com ele pretendiam falar, Paulo Barradas arranjou instalações num edifício situado numa das principais artérias da cidade de Lamego, onde o deputado reside, e colocou uma placa onde se podia ler Paulo Barradas – Deputado – Partido Socialista.
De acordo com declarações do deputado ao nosso Jornal, apenas pretendia indicar a localização do gabinete onde atende os eleitores, criando assim um espaço de diálogo com os eleitores. “A placa era pouco maior que o painel das campainhas e não tinha como objectivo qualquer tipo de ostentação”, garante Paulo Barradas, que diz não entender todo o mediatismo que a placa teve. “À partida deveria merecer um acolhimento favorável por parte das pessoas, já que a abertura do espaço é uma atitude que tem paralelo em parlamentos de outros países”, sublinha.
No entanto, ficou surpreendido com a forma negativa como a questão foi tratada. “Recebi imensas mensagens electrónicas às quais respondi. Expliquei qual o objectivo pretendido, e recebi em troca ‘mails’ de incentivo”, conta, considerando que “a democracia portuguesa ainda tem muito para andar e tenho a obrigação de também contribuir para isso”. A placa foi trocada por outra, desta vez apenas com o nome do deputado, e o espaço é para se manter aberto. “Mudei a placa para preservar o meu partido e para fazer também um pouco de pedagogia. O gabinete manter-se-á incólume de modo a poder continuar a receber as pessoas para trocas de ideias”, garante.
Contactado pelo nosso Jornal, o colega de bancada, Acácio Pinto, lamenta as críticas sem fundamento ao deputado lamecense e considera que a abertura do espaço por Paulo Barradas “é um acto que só o enobrece, porque os deputados devem manter a ligação com o eleitorado”. “Os deputados têm um espaço para atendimento que é o governo civil, onde é disponibilizada uma sala, mas nem todos os concelhos têm governo civil”, sublinha Acácio Pinto, acrescentando que o gabinete, que Paulo Barradas arrendou em Lamego, é pago do seu bolso e está ao serviço dos cidadãos.

Não há mal nenhum em que o Sr. Deputado tenha colocado a placa na porta do seu gabinete.
Entendo até que todos os deputados  - ou mesmo todos os políticos – deveriam colocar placas idênticas nos seus gabinetes particulares.
Mais: parece-me até que deveria ser obrigatória a afixação das ditas nos lugares em que os deputados, autarcas, administradores de empresas públicas recebem as suas clientelas.
Grave seria se este senhor deputado fosse também advogado...

28 setembro 2010

Mais um programa simplista

Foi anunciado agora o Simplegis que promete ser um programa de simplificação dos processos legislativos.
Um documento que merece reflexão, até porque indicia uma série de perspetivas erradas que, a concretizar-se serão pior emenda do que o soneto.

07 setembro 2010

O questionamento do povo

Segundo a Constituição, os tribunais administram a justiça, em nome do povo.
Carlos Cruz resolveu perguntar ao povo se concorda que ela seja administrada assim...
Lê-ser hoje no I:
«São mais de 200 os nomes que Carlos Cruz vai tornar públicos no seu site, e que constam do processo Casa Pia. Estes nomes foram referidos como alegados abusadores de menores na fase de inquérito do caso de pedofilia e irão ser colocados online no final deste mês, bem como todo o restante processo - que inclui as fases de inquérito, de instrução e de julgamento, confirmou ao i o apresentador. Entre estes nomes constam um antigo Presidente da República, um antigo líder do PS, um antigo líder do PSD, um antigo líder do CDS, dois actuais líderes partidários, outros destacados políticos ligados ao CDS, actores de televisão e teatro, dois ex-futebolistas internacionais pela selecção nacional, entre muitas outras personalidades relevantes da sociedade portuguesa.
Todas estas pessoas foram referenciadas no processo por várias alegadas vítimas que foram interrogadas pelos investigadores da PJ. Carlos Cruz vai divulgar no seu site todos os autos de interrogatório onde se podem ler as descrições feitas pelos rapazes alegadamente abusados e a forma como eles acusam todas estas personalidades.
"Confirmo que essas pessoas constam do processo e que, naturalmente, irão aparecer no meu site. Nada me move contra essas pessoas, pois os seus nomes foram atirados para os autos da mesma forma que o meu", confirmou Carlos Cruz ao i. "O que estranho, é que estas pessoas, muitas delas referenciadas por alegadas vítimas e, inclusive, por indivíduos que também me acusam, nunca tenham sido sequer constituídas arguidas e interrogadas pelas autoridades. Então os testemunhos são válidos só para algumas pessoas?", questionou o apresentador, revelando que vai tornar o processo público o mais rapidamente possível. "Neste momento estamos a fazer todo um trabalho de digitalização e ocultação dos nomes das alegadas vítimas." Este trabalho deverá estar concluído no final deste mês.
Questionado sobre o facto de poder vir a ser acusado de crimes de desobediência, por estar a revelar peças processuais, como os vídeos das reconstituições nas casas onde já foi acusado e condenado pela prática de abusos de menores, Carlos Cruz é peremptório: "Sei que isso pode acontecer, mas não tenho medo. As pessoas têm o direito de saber a monstruosidade que me fizeram. Nesta fase não há segredo que justifique o claro interesse público que é a divulgação de tudo o que foi feito para me incriminar a mim e aos outros arguidos. Prova disso é que o meu site já foi visitado por mais de 10% da população portuguesa que tem acesso à Internet. Eu não tenho nada a esconder. Se o Ministério Público tem, esse é um problema que não é meu."
Um dos nomes que Carlos Cruz irá divulgar é o de um ex-líder do PSD, que é acusado nos autos de ter abusado de um menor e presenciado actos de pedofilia numa casa em Lisboa. O antigo presidente laranja foi acusado, a 8 de Abril de 2003, por uma professora, residente na Margem Sul do Tejo. Segundo a denúncia da docente, ela foi levada à referida casa pelo pai, e lá estaria o político que assistiu, nas palavras da mulher, a abusos de menores, tendo ele próprio abusado de um. A procuradora Paula Soares, uma das titulares do inquérito (juntamente com o procurador João Guerra e a procuradora Cristina Faleiro), foi quem recolheu este depoimento, que, mais tarde, mandou simplesmente apensar ao inquérito principal. A mesma mulher acusou ainda um ex-ministro do PSD de ter abusado de menores (de ambos os sexos) numa casa localizada no Estoril. Todas estas descrições estarão online no site de Carlos Cruz.
A procuradora Paula Soares considerou que os factos denunciados eram muito antigos e não estavam relacionados com nenhum dos arguidos, suspeitos ou ofendidos do inquérito da rede de pedofilia, pelo que não ordenou qualquer diligência investigatória, nomeadamente que se procedesse ao interrogatório do pai da suposta vítima a fim de se apurar que casa era aquela e quem era o seu proprietário.
Muitos dos testemunhos e denúncias recolhidos pela equipa de investigadores que trabalharam na fase de inquérito foram desvalorizados, apesar de alguns deles terem testemunhado em tribunal contra arguidos que foram a julgamento, como Ferreira Diniz, Jorge Ritto e Carlos Cruz.
Uma das testemunhas que acusaram estes três arguidos (que durante o processo ficou conhecido por "João A.", nome fictício) denunciou à PJ outros alegados abusadores, um ex-líder do PS e outras destacadas figuras socialistas, bem como os dois internacionais portugueses de futebol. "João A." indicou uma casa em Cascais, no Bairro do Rosário, onde terá sido abusado e filmado em práticas sexuais por estas pessoas, bem como pelo embaixador Jorge Ritto. Também os autos com estes episódios estarão disponíveis no site de Carlos Cruz.
Uma outra vítima, que acusa todos os arguidos de abusos na casa de Elvas, acusou, em inquérito, um homem que trabalharia para Carlos Cruz. As vítimas que terão sido abusadas em Elvas referiram também à PJ abusos praticados por outras pessoas: funcionários da Casa Pia, colegas mais velhos e um antigo provedor da instituição, que nunca foi interrogado pelas autoridades.
Outros jovens denunciaram como alegados abusadores de menores dois conhecidos actores de teatro e televisão e vários políticos ligados à direita. Nos relatos, que Cruz irá divulgar, é dito por estas vítimas que todas estas pessoas eram frequentadoras assíduas do Parque Eduardo VII, onde arranjariam os menores de quem abusavam.
Quem também contribui para engrossar a lista de nomes de suspeitos de pedofilia foi uma jornalista ligada à origem do processo. A repórter foi ouvida pelas autoridades a 16 de Janeiro de 2003, duas semanas antes da detenção de Carlos Cruz, Hugo Marçal e Ferreira Diniz, e revelou que tinha denúncias contra dois cozinheiros da Casa Pia, Jorge Ritto, Carlos Cruz e uma outra relevante figura da televisão. A jornalista entregou um papel que lhe terá sido dado por uma antiga secretária de Estado, em que aquela denunciava advogados, embaixadores, outras figuras públicas e Carlos Cruz.
Uma familiar de Carlos Silvino também escreveu uma carta à procuradora Paula Soares, que consta do processo que Carlos Cruz irá divulgar, em que denuncia alguns políticos já referidos por outras testemunhas, e acrescenta outros nomes. Nenhum deles investigado.»

A má imagem da justiça

O juiz presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, António Silva Gonçalves, mostrou-se, ontem, preocupado com a má imagem que os portugueses têm da magistratura. Discursando na cerimónia de posse dos 17 novos juizes desembargadores, o juiz presidente do Tribunal da Relação de Guimarães sentenciou que a culpa da má imagem que os portugueses têm da profissão reside na «exteriorização de mútuas acusações entre magistrados, tornada pública através dos principais responsáveis pela área da justiça, incondicional e garantidamente apoiada pela nossa menos profunda comunicação social», que «faz difundir negativamente a imagem de todos nós». Para além desta adversidade, concedeu, «reconhecemos, também, que muitas vezes somos nós próprios que nada fazemos para impedirmos que alguns desaires se sobreponham».

Igualdade de armas

Ficou hoje claro, no debate na RTP, que as vítimas da Casa Pia, para além de terem recebido 50.000 € cada uma, foram assistidos por alguns dos advogados mais caros deste país.
Ao que consta, os advogados dos arguidos terão sido pagos por eles próprios ou, pelo menos, nada receberam do Estado.
Isto prefigura uma inaceitável desigualdade de armas, especialmente se o dinheiro gasto foi do Estado ou de entidades públicas.
Parece-me elementar esclarecer estas questões:
- Quem pagou e quanto foi pago a quem?

Grande debate na RTP

O Prós e Contras de hoje foi simplesmente memorável.
Uma grande debate.
Muito interessante a posição do Dr. Rui Rangel, que considerou ofensiva a postura do advogado Sá Fernandes, que levantou a suspeita de o acórdão não estar escrito.

05 setembro 2010

A minha previsão da prisão de Carlos Cruz

No dia em que foi publicada a primeira notícia do Expresso sobre os «casos de pedofilia» fui ao Snob, na Rua do Século, e sentei-me na mesa do canto, onde habitualmente se sentam os jornalistas.

Frequento essa mesa, agora mais esporadicamente, há cerca de 35 anos. Estava lá nesse dia a própria autora do primeiro escrito e alguns amigos de que não posso precisar os nomes. Lembro-me que estava o José Mateus.

Eu tinha lido a notícia com atenção e aquilo «ligava» com uma coisa que eu tinha visto uns anos antes. Por isso mesmo avancei com a previsão de que, a breve prazo, haveria prisões de pessoas importantes. E citei alguns nomes, entre os quais o do Carlos Cruz.

E porque é que o fiz?

Anos antes, fui consultado por um jornalista, aliás também um grande amigo, que estava a preparar um livro sobre pedofilia, tomando por base um processo judicial, cuja cópia eu li com toda a atenção, o qual tinha sido abafado, alegadamente, porque tinha como cabeça de cartaz um alto dignitário de uma organização maçónica.

O processo tinha sido iniciado com diligências relacionadas com uma investigação ao desaparecimento de documentos do automóvel de um ministro de um governo do Prof. Cavaco Silva, que teriam sido furtados por prostitutos.

Nesse processo continham-se algumas dezenas de depoimentos de rapazes que se dedicavam à prostituição masculina nas ruas de Lisboa, todos eles muito pouco consistentes, que declaravam, prostituir-se com senhores que passavam pelas ruas por eles frequentadas (em Belém e no Parque Eduardo VII).

Entre os nomes dos clientes figuravam as principais figuras da televisão, o referido dignitário maçónico, o dono de um dos maiores laboratórios de análises clínicas de Lisboa, vários diplomatas e dois ministros do referido governo.

Da análise que fiz, na altura, penso que na fase final do Conselho de Imprensa, de que eu fora membro, conclui que aqueles depoimentos não tinham a mínima credibilidade para suportar um livro e, por isso mesmo, desaconselhei o meu amigo, que é o jornalista Pedro Varanda de Castro, a desistir do projeto.

Outro elemento importante para o conselho: tinha sido recentemente alterado o Código Penal, no sentido de não admitir, em nenhuma circunstância, a prova da verdade dos factos relativamente a factos relativos à intimidade da vida privada.

Perguntar-se-à porque razão aventei nessa noite a previsão da prisão de Carlos Cruz?

Precisamente porque Carlos Cruz era a pessoa mais importante (com mais notoriedade) referida pelos prostitutos, a par, aliás, de uma série de outros nomes famosos da televisão, como se o próprio investigador, que aliás conheci (e que penso que foi expulso da PJ, por outras razões), tivesse conduzido o processo para decapitar os nomes mais mediáticos deste país.

Era muito importante que esse processo aparecesse, porque do que li depois, o processo Casa Pia parece um clone dele.

O descrédito do sistema judiciário

Já se previa que seria assim: o processo Casa Pia transformou-se num caso que desacredita completamente o sistema judiciário, por razões que, em minha modesta opinião, decorre exclusivamente da deficiência da lei processual penal e da má condução do processo.

Entendo, há muito tempo, que a lei processual penal é deficiente em vários pontos.

Em primeiro lugar porque não é suficientemente rigorosa no sentido de exigir, em sede de inquérito e de instrução, a produção de prova relativamente aos elementos do tipo legal de crime de forma tão exaustiva que permita extrair uma quase certeza da condenação antes de ser proferida a acusação ou a pronúncia.

Os agentes do Ministério Público e os investigadores deveriam ser pessoalmente punidos, ao menos como o são os autores de denúncia caluniosa, quando profiram acusação que, conscientemente, eles sabem que não têm suporte probatório.

Em segundo lugar, proferida a acusação ou pronunciados os arguidos, deveria prever a lei a organização de uma base instrutória, à semelhança do que ocorre no processo civil, especificando-se, de forma objetiva, os factos sobre os quais deve recair a prova em julgamento.

Todos ganharíamos e ganharia a sociedade se a produção de prova se fizesse sobre quietos concretos e objetivos, indicando a acusação e a defesa a sua prova e obrigando-se o tribunal a garantir a ordem na audiência, não permitindo divagações em matéria de produção de prova.

A lei processual penal não permite – e bem – que os depoimentos de um arguido sejam usados como prova contra os demais arguidos. Em minha opinião não deveria, tampouco, permitir o absurdo de à parte acusadora ou assistente poder ser atribuída credibilidade probatória.

É por demais óbvio que o queixoso ou o assistente não são independentes nem parciais; e, por isso mesmo, os seus depoimentos não são credíveis.

Atribuir credibilidade aos depoimentos dos queixosos sem nenhuma prova redunda no mesmo efeito que condenar sem julgamento. Isso é uma coisa horrível, que nos faz regressar aos piores tempos dos autos de fé e que não podemos aceitar no Estado democrático de direito.

Este processo é, desde o princípio, um processo mediático. Mas é o primeiro em que, embora com atraso, os arguidos jogam o mesmo jogo.

O que geralmente acontece, com prejuízo para os arguidos, é que eles ficam calados, não exercendo sequer o direito de resposta de que são titulares relativamente às acusações que o marketing judiciário injeta no sistema de comunicação social.

Há anos que manifesto a minha discordância relativamente à norma do Estatuto da Ordem dos Advogados que proíbe os advogado de debater publicamente questões relacionadas com processos em juízo.

Essa norma ofende, gravemente, o próprio exercício da advocacia, quando é certo que todos sabemos que há uma aparelho montado para fazer a propaganda dos «sucessos» da investigação criminal e do funcionamento dos tribunais.

Conheço bem essa máquina, que já existia antes do 25 de Abril. Eu próprio, no início da minha carreira de jornalista, fiz, com frequência esse trabalho de recolha de informação policial e judiciária junto dos departamentos de relações públicas das polícias ou de operadores judiciários, de quem, naturalmente, porque essas eram as regras do jogo, sempre ocultávamos a identidade.

Ainda sou também do tempo em que as coisas passaram a ser diferentes, ou seja, em que passaram a ser os operadores judiciários a ter a sua agenda de contactos e a passar ao jornalista aquilo que interessava que fosse publicado.

Esse é um jogo que é conhecido tanto pelos operadores judiciários como pelos jornalistas.

Como a informação era, geralmente, filtrada os jornalistas passaram a axigir, como condição para o tratamento da informação, que lhe fossem fornecidas peças processuais, muitas vezes em segredo de justiça, ao que os operadores acediam, na base da confiança em que haviam assentado a escolha do jornalista a quem haviam decidido fornecer «informação quente».

Era esse, para além do mais, o meio mais adequado à defesa, na hipótese de serem acusados de abuso de liberdade de imprensa, na base do princípio de que é isento de pena quem fizer afirmação com a convicção de que ela é verdadeira.

Em muitos casos que conheço, o jornalista tinha a perceção de que o fornecimento de tal informação não era gratuito. Mas essa era, por regra, uma questão secundária, que não justificava o sacrifício do direitos dos cidadãos à informação de que o jornalista é o principal responsável e o principal ator.

Perante este quadro, sempre entendi que as pessoas visadas, mesmo que estivessem sujeitas ao segredo de justiça eram titulares do direito de resposta e poderiam exigir dos meios de comunicação social a publicação das suas razões, em contraposição às mensagens injetadas pelos operadores judiciários.

Mais do que isso, sempre defendi que, antes da publicação de informação ofensiva da honra e consideração de alguém, tinha o jornalista a obrigação de ouvir a pessoa visada, tendo esta todo o direito e o interesse em responder ao que de negativo fosse dito a seu respeito. Só assim é que, em minha opinião, os meios de comunicação se podem desonerar da obrigação de indemnizar pelos danos emergentes da publicação de tais informações, porque constitui dever deontológico fundamental do jornalista o de ouvir as pessoas visadas por informação negativa.

Estas questões sempre foram tratadas como um tabu, nomeadamente pelas entidades reguladoras da comunicação social, nomeadamente pelo Conselho de Imprensa e pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, de que fui membro. Mas foram-no, sobretudo, pelos advogados que, na generalidade, nunca conseguiram resolver a antinomia (no tempo em que isso era possível) entre o segredo de justiça e as matérias publicadas na comunicação social.

Há matérias que estão sujeitas a segredo de justiça – todos os sabemos.

Quando essas matérias transvazam para a comunicação social, devem tratar-se os respetivos conteúdos de forma autónoma, ou seja, deixam de ser matéria sujeita a segredo, no que for necessário para a defesa da honra dos visados.

Carlos Cruz e os seus advogados arrancaram tarde. Tudo seria diferente se, de acordo com as teses que defendo há muitos anos, tivessem usado a estratégia de confronto com o marketing judiciário logo no início do processo.

Fizeram-nos agora – e bem – porque entenderam, seguramente, que um processo deste tipo, mediatizado ao limite, não tem defesa possível se não usarem as mesmas armas,

Foi muito interessante ver na televisão, no dia em que foi proferida uma sentença condenatória, o principal arguido condenado, um juiz e o advogado das chamadas vítimas.

E voltamos ao processo penal. Se se reconhece às chamadas vítimas o direito de afirmarem que os arguidos cometeram contra eles crimes diversos, de abuso sexual, porque se não há-de reconhecer aos arguidos o direito de afirmar que os não cometeram e, sobretudo, de afirmarem que não foram apresentadas quaisquer provas de tais crimes?

Os depoimentos dos arguidos não podem ser valorizados em termos probatórios naquilo que lhes seja desfavorável. Como pode admitir-se que os depoimentos dos queixosos, que têm interesses próprios, possam ter valor probatório.

Todos temos a noção de que os valores que se jogam no processo penal são mais preciosos do que os que se jogam nas jurisdições cíveis. Por isso, se aceitarmos tal regra, teremos que aceitar que, num destes dias, tomando em consideração tal desvalor das questões cíveis, possa o legislador admitir que o autor possa ser testemunha num ação cível em que ele seja interessado.

E aí?

Teremos meio mundo a dizer que o vizinho lhe devem milhões e o tribunal a condenar sem provas, porque a lei permite que o juiz valorize (por convicção) tal depoimento.

Essa é, talvez, a questão mais delicada do nosso sistema processual penal: a possibilidade de os juízes julgarem por convicção (para além do mais induzida pelos efeitos do marketing judiciário) sem que se tenham provado de forma inequívoca todos os elementos do tipo legal de crime e a culpa.

Um dos mais nobres princípios do Estado de Direito é o princípio in dubio pro reo. É preferível não condenar do que condenar um inocente.

Não pode admitir-se, em nenhuma circunstância, a condenação de uma pessoa pela prática de um crime sem que se faça prova inequívoca de todos os elementos do tipo legal de crime e da culpa.

Mais do que a sindicabilidade do acórdão agora proferido pelos tribunais superiores, é indispensável a sua sindicabilidade pela opinião pública.

A questão está lançada.

O que nos interessa saber – a todos – é quais são os factos e quais são as provas. Para apreciar se o tribunal agiu bem ou cometeu um grave erro judiciário não é necessário ter, nesta matéria, quaisquer conhecimentos de direito.

Indispensável é conhecer os factos que foram dados como provados e quais são as provas deles, que foram todas gravadas e apreciadas pelos juízes. Qualquer um poderá fazer o seu juízo.

Mau sinal – terrivel sinal – é que o tribunal não tenha dado a conhecer, sequer aos arguidos, quais são os concretos meios de prova que permitiram as duas conclusões.

Não entramos numa fase negra da justiça portuguesa.

Já lá estamos há muito tempo. Mas só agora é que o pais viu.

01 setembro 2010

Mais um ano de crise...

Vai iniciar-se amanhã, 1 de Setembro de 2010, um novo ano judiciário.
Tudo indica que vai ser mais um ano do processo de falência da própria justiça, que aqui vimos comentando, aliás de forma suave, porque não vale a pena bater mais no defunto.
Todos os dias ouvimos personalidades a declarar que acreditam na justiça. Uns mentem descaradamente, porque se sabe que não acreditam. Outros, pura e simplesmente, cumprem um lugar comum.
Ninguém que seja minimamente consciente e informado pode fazer uma afirmação tão bárbara, pela simples razão de que o sistema está falido e não merece nenhum crédito.
Ao longo dos últimos anos, os sucessivos governos têm feito asneira sobre asneira, contribuindo para a destruição de um edifício que, embora não funcionasse bem, garantia um mínimo de segurança jurídica.
Ando na advocacia há quase 30 anos e não consegui ver o fim de nenhum dos grandes processos de falência/insolvência em que tive intervenção. Milhões de contos do nosso tecido empresarial são delapidados por administrações ruinosas, com prejuizo dos credores e dos trabalhadores, sem que os tribunais tenham a mínima capacidade para fazer cumprir as leis. Podia dar exemplos chocantes, mas não o permite o estatuto profissional dos advogados, que continua marcado por normas que impedem a transparência indispensável à reforma ou à ressurreição.
No último ano, fomos todos confrontados com um novo fenómeno. Há empresas que ferram o calote aos seus credores e que desaparecem por via administrativa, sem que alguém saiba, graças a uma lei feita por medida para proteger os caloteiros. Apesar de todos os sistemas informáticos e da possbilidade de cruzamento de dados, é possivel a uma empresa que seja devedora extinguir-se, desaparecendo como pessoa jurídica, extinguindo-se todos os processos contra ela, por inexistência jurídica da pessoa.
Uma das reformas mais graves na antecâmara da comemoração do primeiro centenário da República foi, quiçá, a reforma do registo civil, que transformou o sistema, que era aberto e público, numa coisa opaca. É impossivel a cada um de nós verificar se tem mais um irmão ou dois, pela simples razão de que os livros do registo civil deixaram de existir, substituidos por arquivos informáticos inacessiveis e insonsultáveis, elaborados com documentos digitais, sem que se preservem os originais em papel, que são destruidos.
Só quem seja absolutamente ignorante não sabe que é muito mais fácil falsificar um documento em papel do que um documento digital.
Se saltarmos para o registo da propriedade, o risco é da mesma natureza. Hoje pode fazer-se um registo de transmissão de um imóvel por telefax, com um documento falso atribuido a um advogado. Claro que o negócio é nulo; mas se entretanto o bem for transmitido a um terceiro de boa fé, será o cabo dos trabalhos para destruir a confusão.
Uma das maiores bandeiras da propaganda dos últimos governos foi a da informatização dos tribunais.
Trata-se de uma enorme fraude, que veio contribuir, de forma muito grave para o agravamento do estado de falência em que a justiça já se encontrava.
Os sistemas adotados são de um primarismo chocante e de uma absoluta irresponsabilidade no que se refere à gestão dos meios humanos. Porque o processo digital é inconsultável (tem que se ler documento a documento) os processos foram duplicados: um processo digital e um processo de papel, ocupando-se os funcionários com tarefas adicionais de digitalização dos documentos ou de impressão dos documentos digitalizados.
Tudo isso acontece quando já há - ha muito - soluções tecnológicas que permitem folhear o processo digital como se fosse um livro, imprimi-lo na sua totalidade se necessário for e consultá-lo por critérios de busca sofisticados.
Boa parte dos vícios que enformam o sistema são de bem fácil solução. Mas o que vemos é que em cada reforma mais se degrada o sistema, caminhando-se para a sua irrecuperabilidade.
Em jeito de conclusão, aqui ficam alguns conselhos para o próximo ano judiciário:
1. Não acredite nos arquivos públicos. Guarde religiosamente os originais de todos os seus documentos;
2. Peça certidões permanentes de todos os seus imóveis e verifique, ao menos de seis em seis meses, se ainda são seus;
3. Siga atentamente a vida dos seus credores. Se forem empresas, verifique, pelo menos de seis em seis meses, se elas ainda existem.

13 agosto 2010

O mistério do Rio

Leio no Jornal de Notícias... e fico estupefacto:
«Duarte Lima está autorizado, desde Março passado, a revelar todos os segredos que ainda guarda, como advogado, sobre Rosalina Ribeiro, a cliente assassinada em Dezembro passado. Mas as autoridades brasileiras estranham ainda não ter sido informadas.
A obrigação de guardar sigilo profissional foi - recorde-se - a razão invocada pelo advogado e histórico do PSD para recusar responder a várias perguntas da Polícia do Rio de Janeiro, Brasil, pelo carácter profissional da reunião de 7 de Dezembro do ano passado com a herdeira de 15% da quota disponível da fortuna de Lúcio Thomé Feteira, falecido em 2000.
Por esse motivo ficaram por esclarecer várias questões em redor do encontro entre Duarte Lima e Rosalina Ribeiro (ver algumas na coluna ao lado), o que, conforme o JN tem vindo a noticiar, levou as autoridades a considerarem o jurista português suspeito no caso. Até porque, pelas 22 horas de 7 de Dezembro do ano passado, Lima deixou Rosalina num local ermo, a 90 quilómetros do Rio de Janeiro, e a morte, com três tiros, foi estimada como tendo ocorrido 15 minutos depois. Foi a última pessoa conhecida a vê-la com vida.
Pouco tempo depois de ter invocado o sigilo, Duarte Lima solicitou à Ordem dos Advogados em Portugal dispensa do dever de guardar sigilo profissional, a fim de, em seguida, satisfazer as dúvidas dos investigadores. A 23 de Fevereiro, o advogado enviou à Polícia brasileira, por correio electrónico, uma cópia do pedido. Na mesma missiva, comprometeu-se, ainda, a comunicar aos brasileiros quando obtivesse resposta.
De acordo com Germano Marques da Silva, advogado agora contratado por Duarte Lima para o representar em Portugal, a resposta já chegou e foi positiva. "Ele agora está à espera que a Polícia brasileira lhe faça as perguntas que entende. O procedimento normal será através de uma carta rogatória", explicou, ao JN, o também professor universitário, especialista em Direito Penal.
Segundo Marques da Silva, a autorização da Ordem terá chegado em Março.
Acontece, porém que, confirmou o JN, até ontem a Polícia brasileira nada sabia sobre o assunto. E com esse fundamento vai pedir à Ordem dos Advogados em Portugal informação sobre o pedido de levantamento de segredo profissional apresentado por Duarte Lima.»
Estou no Brasil e quem me chamou a atenção para esta matéria foi um colega brasileiro que, em jeito de anedota de português, me perguntou se os advogados portugueses dão os clientes à morte.
Aqui, nos meios forenses, a ideia que ficou das notícias é a de que um advogado português abandonou uma cliente num lugar ermo - em jeito de cometimento de crime de perigo - e que ela apareceu morta pouco tempo depois.
O advogado teria recebido um elevado montante - uns milhões de euros...
Sinto vergonha, pura e simplesmente, dos rumores.
É importante que isto se esclareça o mais rapidamente possivel, sob pena de ser posta em causa a honorabilidade de todos os advogados portugueses que trabalham no Brasil.
Este é um daqueles casos em que a Ordem deveria proceder a uma investigação autónoma. Porque todos nós ficamos sob suspeita.

28 março 2010

O estado da Justiva visto pelo sindicado dos mps

Esta entrevista, publicada, feita pelo jornalista Nuno Miguel Maia e publicada  no Jornal de Notícias de 28 de Março de 2010, merece reprodução integral, por nos dar uma visão extremamente precisa e clara do que é a posição do Ministério Público, na atual cena da justiça portuguesa.
Aqui fica para reflexão atual e para memória futura.


«A cumprir hoje um ano à frente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), João Palma não vira a cara a polémicas. Critica o procurador-geral da República (PGR), Pinto Monteiro, por arquivar um processo contra o primeiro-ministro sem investigar. Atira-se contra membros do PS e PSD do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) por discutirem assuntos de pouca importância e dá a entender que Lopes da Mota não foi o único a pressionar no caso “Freeport”.



Das conclusões da última Assembleia Geral pode depreender-se que o primeiro-ministro deveria ter sido investigado por causa do caso Face Oculta?



A existência de indícios de crime avalia-se sempre no final da investigação e não no seu início. Não é prática os magistrados do Ministério Público arquivarem imediatamente notícias de crime; o normal é desenvolverem uma actividade investigatória e concluírem se há indícios suficientes ou não para remeter o caso para julgamento. Neste caso temos uma indicação de um responsável da Polícia Judiciária que é sufragada por um magistrado do MP e por um juiz de instrução criminal, de onde resulta a remessa de uma certidão para efeitos de investigação criminal. Face a estes elementos vindos a público, o que seria normal seria abrir uma investigação criminal.



Na sequência desta polémica, o PGR sentiu-se colocado em causa e pediu uma declaração de apoio ao CSMP. Parece-lhe que fez mal em dar apoio expresso ao PGR?



A declaração do CSMP é susceptível de várias interpretações e reconhece também a legitimidade e legalidade dos despachos dos colegas de Aveiro. Não se pode dizer que a deliberação ponha em causa os colegas de Aveiro. Tratou-se na pior das hipóteses de um empate. Concilia o inconciliável.



Mas o CSMP extravasou as suas competências ou não?



Por via de alguns, não todos, dos conselheiros indicados pela Assembleia da República – pelo PS e PSD, não distingo - e pelo Governo, o CSMP tem-se transformado ultimamente em palco de disputas políticas. Há um alerta no sentido de que não está a preocupar-se com algumas competências que lhe cabem e estará a preocupar-se com questões que escapam às suas competências.



Tem a ver com quê, concretamente?



O CSMP não discute o regulamento de inspecções; não discute as alterações ao estatuto do MP; não discute as questões dos movimentos dos magistrados e necessidade de informatização, entre outros assuntos... Mas dá-se ao luxo de levar um dia para discutir uma questão que – sem lhe retirar importância – não tem a importância de outras. Será eventualmente importante para outras perspectivas que não a perspectiva do interesse do MP...



O PGR tem condições para continuar no cargo?



Quem nomeia o PGR são o Presidente da República e o primeiro-ministro. São eles que têm de fazer a avaliação sobre a existência de condições ou falta delas para o exercício do cargo. E é, como se vê, uma enorme responsabilidade para Cavaco Silva e para Sócrates. Não seria legítimo sermos nós a fazê-lo, sem prejuízo de serem públicas e assumidas grandes divergências entre o SMMP e o PGR.



O problema tem a ver com as pessoas ou o modo de nomeação para o cargo?



Falando em abstracto, tem que ser reequacionado o actual sistema de nomeação do PGR. Até o actual PGR já o disse publicamente. Tem, também a ver com a coerência do sistema, uma vez que a própria lei de política criminal faz o PGR responder perante o Parlamento pela prossecução dos objectivos definidos na Assembleia da República. O que nós perguntamos é se não seria mais coerente que o PGR fosse nomeado pelo Presidente da República mas indicado pelo Parlamento. Mas não excluímos outras alternativas.



Como eleições?



Não é uma questão que nos preocupe muito, serem os pares a escolher o PGR.



Há quem diga que, sem o PGR, da forma que é nomeado, os magistrados do MP não têm legitimidade democrática...



A legitimidade democrática dos magistrados vem de trabalharmos em função de leis aprovadas por órgãos eleitos democraticamente. Por outro lado, o CSMP tem composição democrática, com elementos nomeados pela Assembleia da República e Governo. Mas a nomeação pelo PR, após indicação da AR aprovada por uma maioria especialmente abrangente, mais abrangente que a formada pelos partidos que alternadamente acedem ao poder, reforçaria a actual legitimidade democrática.



E o mesmo problema pode colocar-se em relação aos juízes?



Quem defende essas teorias defende que os juízes e magistrados do MP deveriam ser eleitos. Eu pergunto o que seria da credibilização da Justiça se houvesse voto popular na escolha dos magistrados. Daí adviria uma inevitável politização.



Ouvimos dizer desde a aprovação do novo estatuto do MP que está em perigo a autonomia. O que é temido, em termos concretos?



Quando, para o provimento de vários cargos na hierarquia do MP, se começam a fazer escolhas pessoais em detrimento dos concursos; quando, no âmbito das novas comarcas, se permite a movimentação de magistrados por razões de serviço, está a pôr-se em causa a liberdade de os magistrados do MP se determinarem de acordo com a sua consciência e de acordo com a lei. Abre-se a porta à possibilidade de tudo ser determinado pela hierarquia. É um perigo, que pode concretizar-se ou não, mas é incompatível com a natureza de magistrados dos elementos do MP.



A esta distância, valeu a pena denunciar a existência de pressões no caso Freeport?



O SMMP já vinha a falar de pressões quando veio a público o nome do dr. Lopes da Mota. A nossa estratégia, face ao aumento do nível das pressões de que vínhamos tendo conhecimento, foi dar conhecimento ao Presidente da República, ao qual pedimos uma audiência e relatámos os factos que tínhamos conhecimento...



Mas valeu a pena?



O certo é que houve inquérito e o CSMP determinou uma sanção disciplinar. Gostaríamos que estas situações não existissem. Mas, se existem, em nome da transparência democrática e do funcionamento do MP, é bom que sejam conhecidas e que os responsáveis sejam sancionados. Bom seria que fossem todos sancionados e não apenas os que protegem responsabilidades alheias… Somos contra a cultura do encobrimento, própria dos regimes totalitários.



Então aliviou as pressões?



Não vou dizer que acabaram, mas que aliviou, aliviou. O mais grave é a forma como determinadas pessoas da hierarquia do MP falam do assunto e desautorizam publicamente os titulares das investigações.



De que tipo?



É grave, é público e nem precisa de ser denunciado. Mas daí ninguém tirou, até ao momento, consequências...



Qual o balanço que faz das alterações do processo penal que estão em cima da mesa?



Louvamos a coragem do ministro da Justiça, tendo em vista eliminar os erros da reforma de 2007. Apesar de tudo, esta oportunidade deveria ser aproveitada para uma reforma mais ousada. Mesmo nos pontos que o Governo quer alterar. Por exemplo, se um dos pontos da reforma é o processo sumário, não percebemos que continuem a não se permitidos julgamentos sumários em tribunal colectivo. Permitiriam uma resposta muito eficiente do sistema em questões que têm a ver com a segurança na rua, como furtos qualificados e roubos. Permitiria um julgamento imediato em mais alguns casos de flagrante delito. Permitiria também a diminuição dos casos e dos tempos de prisão preventiva. O arguido teria a sua situação definida muito mais rapidamente. Por outro lado, nos crimes semi-públicos e particulares deveria passar a ser obrigatório o juiz reunir arguido e queixoso antes do julgamento para a possibilidade de uma conciliação. Evitavam-se incómodos e prejuízos para muita gente. A mediação passaria a fazer-se, também, no âmbito do próprio processo, na sede própria. São apenas 2 das várias propostas apresentadas pelo SMMP e que têm obtido um largo consenso.



Qual os aspectos mais positivo e negativo do primeiro ano como líder do sindicato?



Como ponto positivo, a grande identificação dos associados com a Direcção. Na sua esmagadora maioria revêem-se na acção do SMMP. Ponto negativo continua a ser a falta de eco e receptividade das nossas propostas por parte do PGR e do CSMP. Refiro-me a estatuto, inspecções, regras dos movimentos, procuradorias especializadas, recrutamento de representantes, ao próprio funcionamento da PGR... Mas não vamos desistir.»

05 março 2010

A crise, a advocacia e o futuro

A CRISE, A ADVOCACIA E O NOSSO FUTURO…


A Europa em geral e Portugal em particular vivem uma crise económica e financeira profundíssima e sem fim à vista.

Há um velho brocardo que diz que os advogados enriquecem nos tempos de crise. Mas esse brocardo não tem aplicação à generalidade dos advogados numa crise com o perfil daquela com que convivemos.

Temos uma «elite» de advogados concentrada num pequeno grupo de escritórios de Lisboa e em escritórios de referência de cada um dos municípios que atua na área dos negócios políticos ou politizados e que fatura centenas de milhões de euros às entidades públicas e às empresas a quem dão apoio em matérias tão esotéricas como a da feitura das leis ou a contratação de parcerias publico privadas.

É esse, seguramente, o maior mercado da advocacia, porém absolutamente controlado por agentes do poder e pelos seus compadres, num país em que se verifica o paradoxo de um humilde funcionário formado em direito não poder inscrever-se na Ordem dos Advogados, mas em que é permitida a inscrição aos deputados e aos consultores dos ministérios.

Basta ver os currículos de muitos dos dirigentes nomeados para os institutos públicos para constatar que o «recrutamento» de tais dirigentes se faz em firmas de advogados conhecidas pela sua ligação ao Estado e à administração pública.

Como este país é pequeno e nele se sabe tudo – até porque os interessados o fazem constar – este modelo deu origem a distorções no mercado dos serviços que hão de ter um fim, embora não se saiba quando.

Se a lei foi encomendada ao escritório X, é natural que quem pretenda uma opinião jurídica sobre tal lei consulte quem a fez, pelo que a simples feitura das leis por determinados gabinetes lhes adjudica, por iniciativa do Estado, uma importante fatia do mercado.

Óbvio é que, seja num plano nacional, seja numa dimensão mais restrita, os cidadãos e as empresas correm o risco de, pretendendo que alguém defenda os seus interesses, se meterem na boca do lobo, contratando quem esteja, sem se saber, feito com a parte contrária, de forma protegida pela opacidade do sistema e por uma interpretação perversa do sigilo profissional.

O Estado transformou-se num gigantesco polvo, sempre ganhador nos conflitos de interesses que, nas mais das vezes se resolvem por via de negociações em que as partes são representadas por advogados dos mesmos escritórios.

Os tribunais, apesar de funcionarem mal, ainda são a última esperança dos particulares, desde que eles sejam assistidos por advogados que levem o cumprimento dos princípios éticos às últimas consequências.

Perante este quadro, parece-nos que vale a pena clarificarmos a nossa posição e afirmarmos, de forma perentória de que lado estamos.

Escrevemos na primeira página do nosso site (www.lawrei.com):

«Os advogados da MRA recusam a prestação de serviços ao Estado ou a quaisquer entidades públicas, nomeadamente a empresas públicas, e não aceitam participar na solução dos problemas dos clientes em bases de compadrio ou tráfico de influências.

Porque entendem que a promiscuidade entre o interesse público e o interesse privado é, para além do mais, ofensiva da livre concorrência e da boa qualidade dos serviços jurídicos defendem a publicitação na Internet de uma lista permanente dos advogados que prestam serviço ao Estado e a entidades públicas, de forma a que os consumidores possam ter perfeito conhecimento dos níveis de independência das pessoas a quem solicitam apoio jurídico.

Os advogados da MRA defendem que os prazos judiciais e administrativos implicam especiais obrigações do Estado no seu cumprimento, adotando uma postura pro-ativa com vista ao bom cumprimento das leis e à responsabilização do Estado em caso de não cumprimento. Por isso, as procurações que nos são outorgadas, contém, por regra poderes para acionar os mecanismos de responsabilidade civil do Estado e dos funcionários.»

Abdicar dessa área de mercado, em que se praticam tarifas horárias que podem chegar aos 500 € por hora de advogado sénior, implica uma adaptação ao mercado não pode ser adiada.

Se aplicássemos ao Estado, às autarquias e a algumas empresas públicas as regras de análise que se aplicam às empresas privadas teríamos que concluir que o Estado está falido, porque não tem recursos suficientes para suportar os seus encargos. Mas os Estados não abrem falência; empenham-se e usam o seu poder para que os particulares lhe entreguem parte dos recursos que geram com a sua atividade.

O que marca, essencialmente, a atual crise é a falta de liquidez das pessoas e das empresas.

As pessoas viram degradar-se o seu poder de compra. As empresas perderam a competitividade, perante a incontrolável subida do euro e a redução das exportações e, de outro lado, o aumento das importações de países com custos a quem as vantagens cambiais melhoraram a competitividade.

Há, essencialmente, duas vias para um escritório de advogados enfrentar uma crise deste tipo:

Ou manter os seus tarifários e reduzir o volume das prestações, erradicando, como é natural, os clientes que não paguem atempadamente; ou reduzir os tarifários e aumentar o volume das prestações de forma muscular-se para um quadro de crise ainda mais grave.

Conscientes da gravidade da crise que nos afeta, decidimos optar pela segunda via.

Vamos trabalhar mais para ganhar o mesmo, convencidos de que o mercado compreenderá e interpretará de forma positiva este nosso esforço.

Ponderada a situação critica em que vive o país e a necessidade de criar vantagens competitivas, vamos reduzir as nossas tarifas horárias em cerca de 50%. Uma hora de trabalho de um advogado sénior custava 200 € e passa a custar 100 €, o que significa que para atingir um resultado de 10.000 € brutos o advogado tem que trabalhar 100 horas úteis quando antes trabalhava 50.

Para além desta redução (que atinge todos os grupos) vamos mudar alguns métodos relativos à gestão dos processos, valorizando o papel dos estagiários e dos advogados mais novos e a supervisão, de forma a reduzir os custos e a melhorar a eficácia.

Chegamos a estes valores pela análise das contas de alguns dos nossos clientes comparada com a sua atual situação financeira e com as necessidades acrescidas de apoio jurídico que o quadro da crise justifica. Há situações de pessoas e de empresas que carecem da duplicação do esforço na área dos serviços jurídicos mas que não têm as mínimas condições para duplicar os seus orçamentos.

Esta medida é uma resposta especial a esse grupo de clientes. Mas é também um esforço para o reforço da nossa posição em novos mercados, como são o do Brasil, da Índia e dos Estados Unidos em que teremos que assegurar , a par da qualidade dos serviços, preços mais competitivos.

Estamos no mesmo barco em que navegam os nossos clientes e não queremos que esse barco naufrague.

É esse querer que motiva o nosso sacrifício e a reforma do nosso projeto profissional, cientes de que os nossos clientes valorização o pragmatismo desta medida.



Lisboa, 2010-03-05



Miguel Reis



Nota

Tarifas horárias anteriores a 2 de Março de 2010

Grupo A - 199,00 €

Grupo A1 - 159,60 €

Grupo B - 139,80 €

Grupo C - 96,00 €

Grupo D - 72,00 €

Grupo E - 63,60 €





Novas tarifas, a partir de 2 de Março de 2010

Advogados Grupo A - 100,00 €

Advogados Grupo B - 80,00 €

Advogados Grupo C - 60,00 €

Advogados Estagiários Grupo D - 40,00 €

Advogados Estagiários Grupo E - 25,00 €

21 fevereiro 2010

E nós que somos escutados?


Muito se tem falado nos últimos tempos sobre as escutas telefónicas, mas não nada ainda escrito sobre os direitos e interesses das pessoas que são escutadas sem nunca terem conhecimento do facto.

Esse é um dos aspetos mais chocantes do sistema de escutas telefónicas.

Chamo-lhe, propositadamente, sistema porque me parece que foi para isso que evoluiu o que era um meio de prova a usar apenas em situações excecionais, agora transformado num meio comum.

A lei penal protege a vida privada, nomeadamente no plano das telecomunicações, estabelecendo o artº 194º do Código Penal o seguinte:

« 1 - Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.



2 - Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento.



3 - Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.»

Os valores que subjazem a estas normas são completamente cilindrados pelas normas que, a benefício da investigação criminal permitem ao poder judiciário a interceção de comunicações telefónicas e a intersecção de correspondência.

O artº 187º e seguintes do Código de Processo Penal estabelece o seguinte:

«1 - A interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;

c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;

d) De contrabando;

e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;

f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou

g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.

2 - A autorização a que alude o número anterior pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efetivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes:

a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada;

b) Sequestro, rapto e tomada de reféns;

c) Contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título iii do livro ii do Código Penal e previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário;

d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal;

e) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para o artigo 262.º, e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º, do Código Penal;

f) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

3 - Nos casos previstos no número anterior, a autorização é levada, no prazo máximo de setenta e duas horas, ao conhecimento do juiz do processo, a quem cabe praticar os atos jurisdicionais subsequentes.

4 - A interceção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:

a) Suspeito ou arguido;

b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou

c) Vítima de crime, mediante o respetivo consentimento, efetivoou presumido.

5 - É proibida a interceção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objeto ou elemento de crime.

6 - A interceção e a gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respetivos requisitos de admissibilidade.

7 - Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de interceção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.

8 - Nos casos previstos no número anterior, os suportes técnicos das conversações ou comunicações e os despachos que fundamentaram as respetivas interceções são juntos, mediante despacho do juiz, ao processo em que devam ser usados como meio de prova, sendo extraídas, se necessário, cópias para o efeito.



Artigo 188. Formalidades das operações..

1 - O órgão de polícia criminal que efetuar a interceção e a gravação a que se refere o artigo anterior lavra o correspondente auto e elabora relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descreve de modo sucinto o respetivo conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade.

2 - O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação intercetada a fim de poder praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.

3 - O órgão de polícia criminal referido no n.º 1 leva ao conhecimento do Ministério Público, de 15 em 15 dias a partir do início da primeira interceção efetuada no processo, os correspondentes suportes técnicos, bem como os respetivos autos e relatórios.

4 - O Ministério Público leva ao conhecimento do juiz os elementos referidos no número anterior no prazo máximo de quarenta e oito horas.

5 - Para se inteirar do conteúdo das conversações ou comunicações, o juiz é coadjuvado, quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal e nomeia, se necessário, intérprete.

6 - Sem prejuízo do disposto no n.º 7 do artigo anterior, o juiz determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo:

a) Que disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo anterior;

b) Que abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou

c) Cuja divulgação possa afetar gravemente direitos, liberdades e garantias;

ficando todos os intervenientes vinculados ao dever de segredo relativamente às conversações de que tenham tomado conhecimento.

7 - Durante o inquérito, o juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência.

8 - A partir do encerramento do inquérito, o assistente e o arguido podem examinar os suportes técnicos das conversações ou comunicações e obter, à sua custa, cópia das partes que pretendam transcrever para juntar ao processo, bem como dos relatórios previstos no n.º 1, até ao termo dos prazos previstos para requerer a abertura da instrução ou apresentar a contestação, respectivamente.

9 - Só podem valer como prova as conversações ou comunicações que:

a) O Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal que tiver efectuado a intercepção e a gravação e indicar como meio de prova na acusação;

b) O arguido transcrever a partir das cópias previstas no número anterior e juntar ao requerimento de abertura da instrução ou à contestação; ou

c) O assistente transcrever a partir das cópias previstas no número anterior e juntar ao processo no prazo previsto para requerer a abertura da instrução, ainda que não a requeira ou não tenha legitimidade para o efeito.

10 - O tribunal pode proceder à audição das gravações para determinar a correção das transcrições já efetuadas ou a junção aos autos de novas transcrições, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

11 - As pessoas cujas conversações ou comunicações tiverem sido escutadas e transcritas podem examinar os respetivos suportes técnicos até ao encerramento da audiência de julgamento.

12 - Os suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações que não forem transcritas para servirem como meio de prova são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.

13 - Após o trânsito em julgado previsto no número anterior, os suportes técnicos que não forem destruídos são guardados em envelope lacrado, junto ao processo, e só podem ser utilizados em caso de interposição de recurso extraordinário



Artigo 189. Extensão..

1 - O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à interceção das comunicações entre presentes.

2 - A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.»


Pessoalmente não tenho nada contra as escutas telefónicas. Mas é óbvio que, como qualquer pessoa normal, uso o telefone o mínimo possível, não porque faça o que quer que seja de ilegal, mas porque parto do princípio de que toda a gente está sob escuta. Pura e simplesmente não falo o telefone o que não posso dizer em público, porque tenho a sensação de que, mesmo que fale para a minha mãe, há do outro lado um polícia a ouvir-nos.


Todos, ainda que por amostragem, somos vítimas porque perdemos a confiança na privacidade de um meio de comunicação onde fazíamos coisas tão privadas como falar das coisas das nossas famílias ou fazer declarações de amor. E isso porque os jornais nos dizem todos os dias que as escutas foram banalizadas e generalizadas de tal forma que com toda a probabilidade há outras pessoas que sabem das nossas vidas sem que nós saibamos que sabem.


Parece-me que o mínimo que o Estado deveria fazer, para reduzir o dano que nos causa, seria alterar a lei no sentido de nos facultar cópia de todas as conversas em que fomos ouvidos, com rigorosa identificação de quem ouviu tais conversas.

No que se refere ao resto está tudo errado.

Deveriam ser proibidas as transcrições porque, pura e simplesmente, elas deformam o sentido das mensagens, que são uma coisa ouvidas e outra, completamente diferente, reproduzidas num escrito.

E, sobretudo, deveria ser completamente proibida a truncagem das gravações, que se presta às maiores barbaridades e à maior manipulação.

11 fevereiro 2010

A descaraterização do Estado de Direito

A DESCARATERIZAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO

A liberdade de imprensa é, a meu ver, um dos mais importantes esteios do Estado de Direito.

Nos estados modernos ela assenta, essencialmente, na liberdade de investigação jornalística e na liberdade de criação e expressão dos jornalistas que devem entender-se como liberdades instrumentais, de que é beneficiário o direito dos cidadãos à informação, garantido, no caso português, pela Constituição da República.

Há, naturalmente, limites à liberdade de criação e expressão dos jornalistas e esses limites situam-se nos princípios gerais do direito criminal, por um lado e nos deveres de rigor e objetividade da informação, a que os jornalistas estão obrigados para realizar aquele direito fundamental dos cidadãos, que é incompatível com a sonegação de informação.

Não deve entender-se que há sonegação de informação quando esta se refere a factos pessoais socialmente irrelevantes. E, por isso mesmo, na gestão dos seus direitos profissionais, estão os jornalistas obrigados a «parar» no justo limite do equilíbrio entre o interesse público da notícia e os direitos individuais das pessoas visadas.

O critério para essa reflexão tem que passar pela dicotomia entre o pacote dos elementos desnecessários para a melhoria do conhecimento público sobre determinada factologia e o pacote dos elementos relevantes para o seu esclarecimento.

Por isso mesmo, é pacífico, no plano da deontologia do jornalismo que o jornalista deve evitar a publicação de tudo o que se reduza ao mero sensacionalismo. Todavia, no mesmo plano, é inquestionável que, por maiores que sejam os riscos de ser incomodado, o jornalista deve publicar toda a informação a que tiver acesso e que seja socialmente relevante, sob pena se ter que se entender que ele viola a obrigação de não sonegação de informação.

Ouço na SIC-Notícias a informação de que um tribunal decretou o impedimento da publicação do jornal «Sol» porque o mesmo estaria para publicar novas notícias reproduzindo escutas judiciais, a pretexto de que estaria a violar o segredo de justiça.

Se isso for verdade é gravíssimo, porque estaremos perante um quadro de descaracterização do Estado de Direito, com um impacto brutal, muito mais grave do que o que ocorreu com o impedimento da publicação de um livro, como foi o de Gonçalo Amaral. Aí estava a apenas em causa o direito de expressão de opinião, todavia um direito fundamental, mas de muito menor relevância do que o direito a ser informado que, nas sociedades modernas passa pelo exercício do jornalismo, que dele é instrumental.

Dispunha o artº 371º do Código Penal, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 29/2007, de 4 de Setembro :

«Quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei do processo.»

Com tal conteúdo, a lei penal preservava e garantia do livre exercício da liberdade de imprensa e o direito dos cidadãos à informação, colocando o fulcro do segredo de justiça no local em que deve estar, que é o da própria justiça.

Durante a vigência dessa versão do artº 371º do Código Penal registaram-se inúmeras violações do segredo de justiça, não se conhecendo nenhum caso socialmente relevante de condenação por tal crime. Entendia-se, como se entendeu durante anos, que a investigação judiciária e a investigação jornalística tinham natureza completamente diversa e que o respeito pelo segredo de justiça implicava medidas no âmbito exclusivo dos tribunais, não podendo os jornalistas ser sancionados pelo uso legítimo das informações que recolhessem junto das entidades judiciárias, entendidas como fontes, protegidas pelo sigilo profissional, que é um dos esteios da liberdade de imprensa.

A Lei nº 29/2007, de 4 de Setembro, veio transformar os jornalistas em bodes expiatórios da violação do segredo de justiça ao alterar o referido artº 371º, que passou a ter a seguinte formulação:

«Quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo.»

Não se refere o dispositivo à penalização direta dos que, tendo acesso ao processo, divulgaram o teor de atos processuais sujeitos a segredo de justiça, prevendo penalização para quem, independentemente disso, tomando conhecimento de tais factos o divulgar. A norma, pela sua formulação, parece querer visar, especialmente os jornalistas, desresponsabilizando, desde logo, de forma implícita os magistrados, os funcionários e os advogados que são, pela natureza das coisas, os principais suspeitos da violação direta do segredo de justiça.

Pode haver, mas não conheço nenhum caso em que um magistrado tenha sido investigado por violação de segredo de justiça num caso mediático, quando é certo que hoje se multiplicam os juízos políticos dos magistrados em processos judiciais.

Não conheço a decisão agora anunciada que terá ordenado a não publicação (o não acesso ao público) do jornal «Sol». Mas mesmo sem a ver, tenho-a para mim como uma coisa horrível.

Se ela se fundamentar nas perspetivas de publicação de escutas telefónicas que, embora protegidas pelo segredo de justiça, contenham factos socialmente relevantes em termos noticiosos, em conformidade com as boas regras do jornalismo, estaremos perante um caso de censura, constitucionalmente inadmissível e perante um interpretação inconstitucional do artº 371º do Código Penal ou a própria inconstitucionalidade do preceito.

É que a Constituição contém normas muito precisas que, à luz dos princípios da concordância prática e da proporcionalidade relevante, não podem deixar de ser prevalentes para a valorização do direito dos cidadãos à informação, constitucionalmente consagrado do artº 37º.

«Todos têm o direito (...) de ser informados, sem impedimentos nem discriminações» - diz o artº 37º, 1, garantindo o direito de todos os cidadãos à informação. Logo a seguir se vê, no artº 38º, que a realização desse direito passa pela garantia da liberdade de imprensa, estabelecendo o nº 2 que ela implica a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à protecção da independência e do sigilo profissionais.

Se analisarmos o Estatuto do Jornalista, constatamos que figura nele uma norma, que estabelece que o direito de acesso às fontes de informação não abrange o acesso a processos em segredo de justiça, não existindo em tal Estatuto nenhuma outra que proíba a divulgação de factos que sejam conhecidos pelo jornalista e que constem de processos em segredo de justiça.

Ao invés, o Estatuto impõe ao jornalista um conjunto de deveres muito objetivo, que entendemos ser instrumental do referido direito dos cidadãos à informação.

Relevamos do artº 14º o seguinte:

«1 - Constitui dever fundamental dos jornalistas exercer a respectiva actividade com respeito pela ética profissional, competindo-lhes, designadamente:

a) Informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião;

b) Repudiar a censura ou outras formas ilegítimas de limitação da liberdade de expressão e do direito de informar, bem como divulgar as condutas atentatórias do exercício destes direitos; (...)

e) Procurar a diversificação das suas fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos de que se ocupem;

2 - São ainda deveres dos jornalistas:

a) Proteger a confidencialidade das fontes de informação na medida do exigível em cada situação, tendo em conta o disposto no artigo 11.º, excepto se os tentarem usar para obter benefícios ilegítimos ou para veicular informações falsas;

b) Proceder à rectificação das incorrecções ou imprecisões que lhes sejam imputáveis;

c) Abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência.»



Parece-me que o dever de informar com rigor e isenção é manifestamente incompatível com qualquer sonegação de informação, seja ela decorrente da vontade do próprio jornalista, seja ela determinada por qualquer órgão de soberania, nomeadamente pelos tribunais.

O direito dos cidadãos à informação não pode ser impedido ou limitado por qualquer forma de censura, por força do artº 37º,2 da Constituição.

É certo que a mesma Constituição estabelece, no quadro da «tutela jurisdicional efetiva» (artº 20º,3) que «a lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.» Só que não pode deixar de interpretar-se o edifício constitucional no seu todo, dando-se prevalência a um preceito com manifesto prejuízo do que dispõe o outro.

A liberdade de imprensa é um dos elementos estruturantes do Estado de Direito democrático; o segredo de justiça não o é..

A violação do segredo de justiça pode desacreditar a própria justiça, que tem sido incapaz de o preservar; mas não descarateriza do Estado de Direito.

Aí está a diferença. É que a censura, no seu grau mais avançado que é o do impedimento da circulação de um jornal, descarateriza-o, desqualifica-o e torna-o irreconhecível

Porque causa danos irreparáveis.

Hoje já ninguém acredita na justiça.

Amanhã, sabendo-se que um tribunal decidiu impedir a publicação de um jornal que ainda não foi impresso, ninguém acreditará mais na comunicação social.

E a Democracia ficará irreconhecível...