28 novembro 2009

Da barbaridade do segredo de justiça

Há muitos anos que defendo a eliminação pura e simples do segredo de justiça.

Defendi-a nos tempos em que era jornalista e me cabia, pelo menos uma vez por semana, a missão de «fazer a Judiciária», que consistia em comparecer no briefing diário da Polícia, receber um relatório de eventos policiais, cientificamente filtrados e procurar saber mais, se possível para gerar uma «cacha».

Essa minha experiência ocorreu depois de ter feito um curso de formação no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, poucos meses depois do 25 de Abril, onde um prestigiado jornalista, Dominique Pons, nos fez, um dia uma excelente preleção sobre informação policial e nos ensinou algumas técnicas para, a partir da manipulação informativa dos serviços policiais, cumprirmos o essencial do código deontológico dos jornalistas, que consiste na produção de informação rigorosa e completa, a benefício do direito dos cidadãos à informação e no respeito pelos direitos individuais.

Lembro-me, como se fosse hoje, da essência do discurso do Dominique, passados que são trinta e cinco anos. Resumo-a nos seguintes pontos:

1. As corporações, nomeadamente as polícias, têm interesses próprios e um desses interesses consiste em procurar transmitir à opinião pública uma imagem de eficácia corporativa.

2. Essa imagem de eficácia que as polícias procuram transmitir é, por regra, atentória dos direitos individuais das pessoas visadas. As polícias procuram fechar os dossiers com glória antes mesmo dos julgamentos; e, por isso, estão sempre interessadas em condicionar os tribunais por via da opinião pública, porque a condenação é, ela mesma, a prova da sua eficácia e a absolvição a prova do seu fracasso ou do seu abuso.

3. Numa sociedade mediatizada, o réu já chega condenado ao tribunal, porque foi colocado na posição de cabeça de cartaz mas, com alguma crueldade, ele não pode participar na ação mediática que o envolve.

4. O ideal seria que os jornalistas pudessem aceder a todas as fontes. Produzindo informação rigorosa, eles ajudariam os tribunais a reduzir o estresse causado pelo marketing judiciário, melhorando a qualidade da justiça. Não sendo isso possível, porque existe nas nossas jurisdições essa barbaridade do segredo de justiça, o mínimo que se exige dos jornalistas é que questionem os polícias e que questionem a própria opinião pública, suscitando todas as dúvidas que cada casão justificar.

Fiz alguns amigos nessas minhas visitas à Judiciária na qualidade de jornalista, mas não esqueço nem o incómodo com que era vista a minha presença nem o alívio que esses amigos sentiram quando deixei de fazer esse serviço.

Tenho a ideia de que, durante longos anos, os relatórios que as polícias forneciam aos jornalistas eram tratados como uma coisa mais ou menos sagrada, ao ponto de muitos jornais de referência nem sequer mandarem jornalistas aos briefings, pagando uma avença ao homem da Arcada , que, diariamente recolhia os relatórios das policias e dos hospitais e os entregava nas redações.

E lembro-me de que as perguntas que eu fazia nos briefings eram tomadas, sobretudo no princípio, como autênticas heresias, a que algumas vezes era dada uma resposta provocatória do tipo: «Mas o senhor jornalista quer pôr em causa a seriedade da polícia?»

Eu tinha acabado o meu curso de direito uns tempos atrás e isto chocava-me profundamente, porque abalava uma série de princípios em que eu acreditava, mas sobretudo porque naquele curso de Paris nos acordaram para a problemática das lesões que podem ser causadas pela comunicação social na vida dos cidadãos.

O caso mais escandaloso de manipulação policial que conheci foi o que destruiu a imagem e liquidou a carreira política de Edmundo Pedro, quando ele recolhia as armas distribuídas no 25 de Novembro para as devolver ao Exército, tendo sido injetada na comunicação social a notícia de que fora preso num processo em que se misturavam armas com contrabando. Veio a verificar-se mais tarde que era tudo mentira.

Tudo isto porque nós, jornalistas, mesmo que tivéssemos fortes indícios, ou quase certezas de que aquelas informações eram falsas ou, pelo menos, pouco rigorosas, não as podíamos confirmar verificando os processos de que emanavam.

Tanto no que se refere à justiça como à política, fui eu próprio vitima de informação manipulada pelas fontes e acho que esse é um dos maiores dramas de qualquer jornalista. A fonte é credível, a informação é documentada, podendo embora não ser toda a informação. O que fazer, quando certo que uma das regras da imprensa de informação geral consiste em difundir tudo o que seja socialmente relevante?

Um belo dia um membro do Conselho da Revolução entregou-me cópia de uma ata em que se dizia que o general X não seria nomeado diretor da Academia Militar porque tinha sido informador da PIDE. O homem já tinha sido penalizado (porque foi decidido não o nomear) e era para mim duvidoso o interesse da notícia, que me parecia destinada, apenas, a denegrir a imagem do cavalheiro. Mas o meu chefe de redação, o saudoso Artur Alpedrinha exigiu que a notícia se fizesse, porque era uma cacha: «Então tu tens uma chacha dessas, dada por um conselheiro da revolução e não queres publicar? És tolinho ou quê?...»

Uns anos mais tarde, já tinha abandonado o jornalismo, defendi o jornalista Albino Ribeiro Cardoso num processo crime que lhe foi movido por Duarte Lima, por causa de uns escritos no «Tal & Qual» que liquidaram a carreira daquele político, porque estavam extremamente bem documentados. Rigorosamente o mesmo drama; o jornalista tinha recebido, de um alto responsável, pessoa da maior credibilidade que era companheiro de partido de Duarte Lima, um dossier absolutamente comprometedor, que não podia ficar escondido, ainda à partida pudessem avaliar-se as suas consequências. Quando, mais tarde, tivemos a oportunidade de analisar o processo que continha esses documentos, concluímos que era apenas uma parte dos documentos, razão porque aquilo que, na altura foi um escândalo, tivesse ficado em águas de bacalhau. Mas o político Duarte Lima foi destruído, porque o jornalista viu impedida a sua investigação pelo famigerado segredo de justiça.

Quando passei a exercer a advocacia apercebi-me do verdadeiro sentido e alcance do segredo de justiça. Na maior parte dos casos com impacto mediático em que participei como advogado, quando esperava encontrar peças bombásticas nos processos, verifiquei que as montanhas pariram ratos.

Muito cedo cheguei à conclusão que o segredo de justiça não tem nenhuma utilidade para a investigação e que, bem pelo contrário, serve apenas para facilitar a negligência investigatória e permitir exercícios de puzzling, geralmente de tão má qualidade que acabam, depois, por ser desmascarados nos julgamentos.

Tenho, para mim, a convicção de que a investigação jornalística é, por regra, muito mais séria do que a investigação policial e que isso não decorre da maior seriedade dos jornalistas por relação aos polícias mas do simples facto de os jornalistas, trabalhando embora sob pressão maior do que a dos polícias, serem mais facilmente desmascarados e, sobretudo, responsabilizados.

Um jornalista que acuse alguém da prática de um crime que esse alguém não cometeu está, à partida, condenado a indemnizar, se o lesado propuser contra ele a devida ação judicial. Mas se um polícia ou um agente do Ministério Público acusar alguém da prática de um crime que não cometeu, destruindo completamente a vida dessa pessoa, sem que tenha fundamento sério para deduzir a acusação, não acontece nada, porque é praticamente impossível obter a sua condenação.

É muito frequente constatar, em processos muito mediatizados, que no momento em que foram soltas determinadas notícias, elas não tinham o mínimo fundamento e que, nalguns casos, foram meras construções de comunicação, adequadas a condicionar depoimentos futuros.

A verdade é que nunca se encarou este problema a sério, pela simples razão de que há interesses antinómicos entre a justiça e a comunicação social. Enquanto esta última sempre viveu e continua a viver da notícia, que é o espelho do dia a dia, morrendo as notícias no próprio dia em que nascem, a justiça trabalha a prazo, produzindo as suas mensagens próprias num momento em que a notícia já morreu, mas condicionou, de forma geralmente irremediável e quase sempre parcial, a memória coletiva.

Penso que o fim – absoluto e total – do segredo de justiça beneficiaria a própria justiça e a comunicação social. E nem sequer há hoje razões técnicas que justifiquem a manutenção do segredo. Tudo pode ser facilmente editado na Internet, de forma a que seja visível por todos os da cidade, sem que com isso perca qualidade a investigação. Bem pelo contrário.

Beneficiaria a justiça, porque a factologia em investigação seria questionada de forma muito mais viva a rigorosa pela comunicação social, perspetivando-se quadros mais amplos de conhecimento, de que só beneficiaria a verdade. Beneficiaria a comunicação social, porque ganharia credibilidade, deixando de ser aquilo em que se transformou hoje: um lençol promíscuo onde o marketing judiciário lança, de forma absolutamente filtrada o que lhe convém.

O argumento de que a completa transparência prejudicaria a descoberta da verdade é um argumento completamente falacioso, porque, como é sabido nenhum depoimento vale para além da acusação e todos eles (desde os dos arguidos até aos das testemunhas) só têm eficácia para suportar o juízo final se forem produzidos em sede de julgamento público.

O que temos hoje é um sistema absolutamente selvagem, que degrada tanto a justiça como a comunicação social. A justiça porque perde toda a credibilidade quando se demonstra, em boa parte dos casos, que afinal era tudo mentira ou, pelo menos, o trabalho de base, que é o da investigação estava tão mal feito que os próprios tribunais concluíram não haver fundamento para incriminação. A comunicação social porque, não podendo esconder o que é noticia, é usada para destruir pessoas a quem, por causa do dito segredo, é recusado, inclusivamente o direito de resposta.

Esse é, talvez, o aspeto mais bárbaro do quadro. As televisões repisam de meia em meia hora a notícia de que A ou B cometeram um crime, os jornais publicam-lhe as fotografias e todos os detalhes que se «soltam» dos processos e os visados não podem responder pelas mesmas vias, porque tal é impedido pelas normas reguladoras do segredo.

Só quem não percebe os mecanismos mais elementares da comunicação de massas pode ficar indiferente a esta barbaridade que consiste em um cidadão ser acusado hora a hora na praça pública e não poder defender-se nela, desmentindo, esclarecendo, levando para a praça pública dados que contradigam as mensagens negativas com que o massacram.

O segredo de justiça funciona, nesse quadro, como um mecanismo de absoluta denegação do direito de defesa, neste outro canal que, por regra é muito mais importante do que o da justiça. É que na justiça ainda é possível a um sujeito defender-se, em conformidade com os seus próprios ritos. Mas as regras da comunicação são outras e ou é reconhecido ao sujeito o direito de se defender imediatamente e sem nenhumas limitações ou ele sofrerá danos irreparáveis, acabando por ser condenado pela opinião pública, de forma irreversível.

Isto é especialmente grave porque é impossível chegar alguma vez a descobrir onde está a face oculta da justiça e que interesses estão por detrás dela. Na verdade, o que todos sabemos, da experiência de anos, é que o segredo de justiça está na lei mas há como uma mão invisível, de alguém com face oculta, que aproveita esse segredo para manipular a comunicação social, em termos cada vez mais sofisticados.

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