04 março 2008

Advogados postos em «saldo» pela Ordem

A Ordem dos Advogados assinou um protocolo com a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária nos termos do qual se compromete organizar um «reforço da assessoria jurídica da ANSR, mediante a disponibilização, para o efeito, dos advogados e advogados estagiários necessários ao acompanhamento da instrução de processos de contra-ordenações rodoviárias».
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária é uma autoridade de polícia a quem compete, nomeadamente, acoimar os infractores das regras estradais. E do que se trata - deve dizer-se isso com toda a clareza - não é de produzir trabalho jurídico, para o qual seja necessários especiais conhecimentos de direito, mas de preparar «decisões», de forma mais ou menos automatizada, com vista à cobrança das coimas previstas para as respectivas autuações.
O que, na circunstância, vão fazer os advogados ou os advogados estagiários é um trabalho que poderia ser feito por qualquer pessoa e que, feito como vai ser por advogados, só retira dignidade à classe.
O protocolo prevê que cada advogado ou advogado estagiário:
a) Separe diariamente, por estado do processo, 1.000 processos fisicos, o que supõe mais de 16 horas de trabalho se, de forma ininterrupta, cada pessoa der uma atenção de 1 minuto a cada processo;
b) Que cada advogado prepare um mínimo de 30 propostas de decisão diária, o que suporia um mínimo de 15 horas de trabalho, se cada projecto demorasse 30 minutos ou 7h30 se cada projecto demorasse 15 minutos.
As tarefas referidas em a) são remuneradas à razão de 50 € por milheiro (ou seja 5 cêntimos por processo, que é o mesmo que dizer 50 cêntimos por dez processos ou 5 euros por cem processos).
As tarefas referidas em b) são remuneradas à razão de 1,67 € por cada proposta de decisão administrativa, projectando o valor de 50,00 € para as 30 propostas diárias.
Prevê ainda um protocolo que haverá um advogado coordenador por cada grupo de 15 advogados ou advogados estagiários, destinado a dar uma «garantia da sua qualidade técnica» o qual apenas autoriza a introdução no sistema informático das «decisões por si validadas».
Ganhará 1.500 € por mês e, feitas as contas terá que verificar diáriamente:
- 15.000 processos «separados»;
- 450 propostas de decisão.
Isto é absolutamente inqualificável a vários títulos:
1. Em primeiro lugar porque atinge no seu auge mais profundo a tão clássica quanto conturbada questão das incompatibilidades com o exercício da advocacia.
Se os advogados podem, com o alto patrocínio da própria Ordem, desenvolver tarefas próprias da actividade policial-administrativa, porque não hão-de os polícias, os militares, todos os funcionários públicos, os demais que se contém nas diversas alíneas do artº 77º do Estatuto da Ordem dos Advogados exercer a advocacia?
Ou será que alguém engole a treta de que a instrução de processos de contra-ordenação por violação de normas de polícia é actividadade própria da advocacia ou, sobretudo, que o método adoptado aproveita de algum modo, ainda que minimamente, os conhecimentos júrídicos dos agentes.
2. Em segundo lugar porque, mesmo que assim não fosse, o modelo económico não é sério nem honesto, como constata qualquer cidadão minimamente informado. Não é possivel a ninguém tratar, com um minimo de cuidado, da classificação de 1.000 processos por dia nem preparar 30 propostas de decisão por dia. E é ainda muito menos sério que alguém possa aceitar a supervisão diária da classificação de 15.000 processos ou apreciar 450 propostas de decisão.
3. Em terceiro lugar porque este protocolo, nos termos em que está formulado, atinge de forma violentíssima princípios estruturantes da advocacia, como são os da honestidade, probidade, da rectidão e da lealdade e expectativas que se instalaram na comunidade, como sejam a de que o advogado é um defensor e não um acusador ou alguém que se vende por um prato de lentilhas a um qualquer poder.
Este protocolo desprestigia a advocacia e os advogados.
O minimo que se exige é que os cidadãos saibam quem são os inscritos na Ordem dos Advogados que vão aceitar este trabalho, para que os possam marginalizar.
Quem pode, afinal, confiar a defesa dos seus interesses a alguém que aceite prestar serviços jurídicos nas aludidas condições?

Sem comentários: