23 setembro 2006

23 de Setembro de 2006

Os debates públicos recentes sobre as questões da justiça não fazem antever nada de positivo, bem pelo contrário.
A situação é tão complicada que o ideal seria parar para equacionar os problemas reais do funcionamento do sistema, em vez de lançar mais achas para a fogueira e criar novos problemas.
Os grandes problemas da justiça portuguesa não estão nas leis mas na sua aplicação. Por isso mesmo eles não serão resolvidos, essencialmente, com alterações legislativas.
O que é preciso mudar - e mudar radicalmente - é o próprio sistema administrativo da administração da justiça e a postura dos diversos operadores judiciários.
Mexer no mapa judiciário ou no estatuto das magistraturas em aspectos que não sejam essenciais é uma asneira que nada resolverá e que, pelo contrário, ainda acentuará mais a crise.
Era importante que todos pudéssemos voltar a acreditar numa justiça em que ninguém já acredita. Para que isso seja possível, é indispensável, antes de tudo, promover por todos os meios e em todos os planos o bom rigoroso cumprimento das leis e responsabilizar quem as não cumpra.
Isso só é possível com uma profunda reforma administrativa que permita tal cumprimento.
Não é viável exigir a um juiz que cumpra os prazos processuais se ele estiver inundado com processos para além do razoável.
Não é possível exigir a um magistrado do Ministério Público que ele não deixe prescrever processos que lhe estão confiados se ele não dispuser de meios para a investigação desses processos.
O principal problema dos tribunais é, mediatamente, um problema de métodos de trabalho e, imediatamente, um problema de produtividade, que decorre tanto da inadequação dos métodos como do quadro de irresponsabilidade dos operadores.
Não há nenhuma razão para que os serviços de justiça não sejam encarados como serviços e, por isso mesmo, sujeitos às regras comuns de organização e de controlo da produtividade dos serviços.
Tenho entre os meus amigos magistrados que se esfalfam com trabalho e que passam pela fama injusta que afecta a classe porque são obrigados a não respeitar os prazos processuais. E se lhes pedirem uma demonstração de que trabalham dez ou quinze horas por dia, eles não a têm.
Em contrapartida, eles próprios admitem que há outros que têm os processos atrasados, porque, pura e simplesmente, não trabalham quanto deviam trabalhar.
Constatamos com frequência, em processos criminais, que há casos com arguidos presos em que o processo está parado dias e dias, sem nota de nenhuma diligência, ou com diligências à espera de outras que por relação a elas não têm nenhuma relação de dependência.
Entendo que uma tal postura é criminosa, atento o disposto no artº 369º do Código Penal. Verdade é que é absolutamente inviável responsabilizar os autores da falta de diligência.
Antes de qualquer mexida profunda nos códigos ou nos ordenamentos processuais, seria importante reflectir sobre esta realidade e lançar um autêntico programa para a reabilitação da justiça, que pudesse apontar para o respeito integral as normas relativas a prazos num horizonte do máximo de dois anos.
Isto só será possivel com uma reforma administrativa profunda, que tem que passar pela digitalização integral dos processos, pela adopção de meios de comunicação electrónica com os tribunais e pela criação de uma quadro de responsabilização efectiva dos operadores, incluido os juizes e os magistrados do Ministério Público.
O que se vem fazendo em matéria de informatização da justiça é um desastre e implica desperdícios que custam milhões de euros.
O Habilus é, nos tempos que correm, um ferramenta ridícula e quase inútil, que consome recursos incríveis e não aproveita a ninguém. Para além das movimentações dos processos, dá-nos muito pouco mais do que a notícia de junção de folhas em branco.
É imperativa a implementação de uma solução de processo digital interactivo que permita:
  1. A integração de todas as peças processuais;
  2. A notificação automática dos operadores que tenham que ser notificados;
    A notificação dos magistrados da junção de novas peças ou documentos;
  3. A fixação automática dos prazos para resposta dos diversos operadores e respectiva notificação;
  4. A aplicação automática de sanções (multas) a quem violar os prazos;
  5. A contabilização do tempo despendido por cada um dos operadores, o que potencia a um tempo a avaliação da produtividade dos operadores afectos ao tribunal e, a outro tempo, a alteração das regras de cálculo de custas.

A justiça é, seguramente, a área em que os consumidores estão menos protegidos.
Tudo é justificado pelo «excesso de serviço», que se transformou numa panaceia incontrolável e insidicável.
Só será possível pôr termo à completa falta de crédito da justiça se se criar um quadro de transparência que permita, de um lado, verificar se o excesso de serviço é real e, de outro, detectar, dia a dia e hora a hora o excesso de serviço efectivamente existente e pôr-lhe termo de forma automática com recurso a uma bolsa de operadores, a quem seriam distribuidos os excedentes.
Claro que os sistemas informáticos podem ser facilmente «enganados» pelo comportamento humano, pelo que o sistema teria, em todo o caso, que ser permanentemente auditado, por entidade independente.
Podem fazer as reformas que quiserem e estabelecer os pactos que quiserem. Mas não resolverão problema nenhum enquanto não derem à justiça a credibilidade que lhe advêm, essencialmente, da prontidão e do rigor no tratamento dos diversos utentes. E isso passa, antes de tudo, pela adopção de um modelo de organização que permita uma boa gestão dos recursos, a exigência de padrões de produtividade considerados razoáveis no sector dos serviços e a alocação de meios adequados às necessidades em caso de excesso de serviço. Mas passa, por outro lado, também, pela eliminação dessa falta de transparência que continua a permitir que haja processos que se eternizam e que outros lhe passem à frente.
Ninguém compreende que, num determinado juízo, um processo com três ou quatro anos continua a aguardar um despacho saneador, quando há processos com meses que têm julgamento marcado.
É fundamental, de outro lado, pôr termo ao quadro de absoluta irresponsabilidade dos juizes e dos magistrados do Ministério Público.
O quadro actual só inferioriza os titulares dessas magistraturas e retira qualidade à justiça. Não há nenhuma razão para um cidadão não possa pedir a um tribunal (que deveria ser, obrigatoriamente um tribunal de juri) que condene um magistrado menos diligente a indemnizá-lo. Nem há nenhuma razão para que só em situações de negligência grosseira, nunca declarada por razões corporativas, um magistrado possa ser responsabilizado.
A instituição de um seguro de responsabilidade civil resolveria, em boa parte, os problemas suscitados críticas actuais a um sistema de responsabilização dos magistrados, pelo que não nenhuma razão para adiar a solução deste problema, que descredibiliza a justiça.
Creio bem que a instituição de um sistema de responsabilização dos magistrados, nos termos gerais, maxime por ofensa das leges artis, seria um importante factor de melhoria da qualidade da justiça.
Tem-se falado muito da necessidade de alterar as leis do processo, de forma a facilitar o andamento das lides. Não posso estar mais em desacordo.
O problema não está nas leis mas na sua deficiente aplicação, nomeadamente na excessiva burocratização dos processos, que pode ser anulada, em boa parte, com ganhos de tempo incriveis, pela introdução de um processo digital interactivo.
Mexer no mapa judicial nesta fase do campeonato é uma enorme asneira, que não resolve nenhum problema e que, ao contrário, vai agravar os problemas. Não há nenhuma comarca que não tenha a dignidade para ter um juiz, um magistrado do Ministério Público e dois funcionários, que são os meios mínimos indispensáveis para fazer funcionar um tribunal.
A única coisa actualmente estável na justiça é o mapa judiciário. Mexer nele é adicionar um factor de crise desnecessário. Mas é, sobretudo, um enorme erro quando não há dados que permitam fazer a «mexida» com um mínimo de segurança relativamente aos resultados.

23 de Setembro de 2006
Foi uma semana agitada para a área da justiça.
O que vejo nos debates dos últimos dias é a demonstração do título do blogue. A justiça faliu mesmo e agora são os seus próprios operadores a reconhecê-lo.
Parece-me, do que vem nos jornais e do que se ouve na televisão, que virá finalmente a público uma noção minimamente rigorosa do que é o escândalo do processo penal.
Um cidadão a quem é imputado um facto criminoso em Portugal está impedido durante meses de produzir prova em sua defesa, por lhe ser absolutamente vedado o acesso ao processo durante a fase do inquérito.
Que saudades dos tempos da outra senhora nesta matéria. O processo penal era muito mais leal, sendo o arguido confrontado imediatamente com as provas e desafiado a oferecer contra-provas.

21 setembro 2006

20 de Setembro de 2006

É preocupante a leveza do funcionamento do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados.
Antigamente, sujeitar um advogado a procedimento disciplinar era uma coisa séria. Hoje parece uma banalidade, ao ponto de o sistema de descredibilizar e poder cair no ridículo.
Nós, os advogados, somos especialmente exigentes em vários planos, nomeadamente no cumprimentos dos prazos, na exigência de rigor na garantia dos direitos de defesa, na crítica ao abuso de poder ou à imperfeição dos actos jurídicos.
Mas parece que não olhamos ao que vai na nossa própria casa, onde se verifica boa parte dos exageros que apontamos, às vezes de forma cruel, aos outros.
Preocupa-me sobretudo o efeito castrador que isto pode ter nos mais jóvens, que começam a profissão aterrorizados pelo medo.
A Ordem dos Advogados está a tratar muito mal as liberdades fundamentais e isso é intolerável. Tem que mudar, sob pena se perder a mais importante referência da justiça.
Parece que agora há uns advogados empregados que anulam as funções cometidas aos membros dos conselhos deontológicos. Não pode ser...
Se elegemos os nossos pares para nos julgarem, é intolerável que alguém que não foi eleito possa produzir acusações, depois assinadas de cruz por quem não as escreve.
Uma vergonha...
PS - E ainda corro o risco de levar mais um processo disciplinar por escrever isto, agora que está na moda perserguir os advogados por delito de opinião.

20 setembro 2006

20 de Setembro de 2006

A crise da justiça chegou à própria Presidência da República.
Segundo consta do site da Ordem dos Advogados , a presidência divulgou a seguinte nota informativa:
"Completando-se em 7 de Outubro próximo os 6 anos do mandato do actual Procurador-Geral da República, o Governo propôs a nomeação, para seu substituto, nos termos do art.º 133, alínea m) da Constituição, do Senhor Juiz-Conselheiro Dr. Fernando José Matos Pinto Monteiro. A proposta mereceu o acordo do Presidente da República, tendo a posse sido fixada para 9 de Outubro."
Simplesmente inacreditável...
Ninguém acredita que o Engº Sócrates tenha proposto o nome do Dr. Pinto Monteiro para substituir o Dr. Souto Moura, não só porque o Dr. Souto Moura é insubsituível mas também porque não se trata de uma substituição, mas de uma nova nomeação, no termo de um mandato que se esgotou.
Má sorte a do Dr. Pinto Monteiro quando, logo á nascença, é qualificado como o substituto.
E grande gaffe do palácio de Belém.
19 de Setembro de 2006

Depois de uns quinze dias em que resolvi não escrever sobre este estado da justiça, que me amargura todos os dias, resolvi participar num colóquio organizado pela SEDES para debater o Pacto assinado, há dias, pelo PS e pelo PSD.
Foi um debate muito interessante, como geralmente acontece nas realizações da SEDES.
Presidido por João Salgueiro, abriu o dito com uma intervenção da Dr.ª Cândida Almeida, Procuradora Geral Adjunta e directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).
Num discurso enérgico, a procuradora afirmou a sua descrença relativamente ao sucesso do acordo político, essencialmente pelo facto de os operadores judiciários não terem sido consultados pelos partidos. Foi muito veemente na crítica à alteração das regras do segredo de justiça e da progressão dos magistrados nas carreiras.
Se Cândida Almeida fosse representante de toda a magistratura do Ministério Público, teríamos que concluir que o acordo está sob suspeita por parte desses magistrados.
Daniel Proença de Carvalho, no seu estilo incisivo e elegante, desmontou os argumentos essenciais da procuradora, para explicar que estamos perante um acordo político, feito no lugar próprio e pelos métodos próprios, que tem a vantagem de responsabilizar os principais partidos pelo sucesso ou insucesso das reformas. Aplaudiu e apelou ao aprofundamento do controlo das magistraturas por órgãos em que participem cidadãos que as não integrem, defendendo uma melhoria da legitimação das mesmas.
O Dr. António Martins, Juiz Desembargador, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, sem deixar de suscitar o mesmo tipo de suspeitas que foram levantadas por Cândida Almeida, a propósito da falta de consulta dos diversos actores do teatro judiciário, manifestou alguma abertura relativamente a alguns pontos do acordo político, sustentando que é importante aproveitar esta oportunidade para, efectivamente, começar a reformar.
Em representação dos advogados, o Bastonário Rogério Alves considerou o Pacto como globalmente positivo, salientando que uma boa parte dos princípios nele contidos foram defendidos pela Ordem.
O quadro que se adivinha faz antever a Ordem dos Advogados a apoiar a maioria e as instituições representativas dos magistrados judiciais e do Ministério Público a adoptar uma postura muito crítica relativamente à reforma.
Tomei parte no debate para opinar que esta apresentação tem o sabor de uma novena, daquelas que se faziam quando não chovia, com a exclusiva intenção de, pela fé e pela união, afastar as amarguras dos lavradores vitimas da seca.
Às vezes até chovia e aí davam-se avés ao criador. Mas enquanto não chovia, permanecia a fé de que choveria e ninguém blasfemava contra a ingratidão da natureza.
O Pacto teve esse sabor nesta entrada agreste em novo ano judicial.
Parece que toda a gente ficou embevecida e esqueceu, de um dia para o outro todos os problemas que afectam o sistema.
Já ninguém fala nos problemas da acção executiva, nem nos atrasos dos processos, nem na quase impossibilidade de obter uma sentença em tempo útil.
Mas, pior do que isso tudo, é o ambiente de tensão, descontentamento e indiferença que afecta juizes, magistrados e funcionários.
Ainda não se recuperou o trauma das férias e o que observamos no dia a dia é que as pessoas estão sentidas e sem vontade de trabalhar.
Estamos, verdadeiramente, num impasse que nos pode conduzir a uma situação irreparável, como a que já temos no âmbito da acção executiva.
Está tudo parado e o Pacto transformou-se num anestesiante.
Os anúncios são todos de saltos para a frente.