18 junho 2006

17/06/2006

Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artº 202º, 1 da Constituição).
Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (artº 202º,2).
A Constituição tem um tremendo buraco: é que os tribunais fiscalizam e podem julgar todos os órgãos de soberania e os seus elementos; porém não são fiscalizados por ninguém.
O nosso sistema aposta numa concepção quase teológica da infalibilidade da justiça.
Essa concepção alimenta uma tremenda fraude que começa logo no paradoxo de não haver meios, de nenhuma natureza, que obriguem os próprios tribunais a respeitar a legalidade que é pressuposto da sua própria acção.
É certo que apareceram por aí umas experiências tímidas – mesmo muito tímidas – de observatórios, que se ficam sempre pelas meias tintas e justificam tudo com argumentos conexos com a própria lógica da infalibilidade. É o excesso de processos, é a falta de meios humanos e logísticos, é redução das férias judiciais – tudo argumentos falsos e sem sentido.
O verdadeiro drama está na insindicabilidade dos tribunais por entidades externas, não corporativas.
Há problemas estritamente jurídicos que se resolvem (enquanto não acabarem com eles) com o mecanismo dos recursos. Mas há um conjunto de outros problemas que são insolúveis porque derivam de vícios acumulados, que só podem ser corrigidos por via de auditorias de qualidade realizadas por entidades externas.
Isso passa-se em todos os planos, desde o cível o criminal, passando pelo administrativo.
Ninguém tem a garantia de que o seu processo é tratado dentro de um «ordem normal» ou se é posto para baixo ou para cima… Na realidade, há prazos processuais muito precisos para os actos da secretaria, dos juízes e das partes. Mas só as partes é que os cumprem, porque se o não fizerem são sancionadas com multas.
Os juízes, normalmente, não os respeitam, justificando-se com o excesso de serviço, que nem sequer é comprovável.
O sistema permite, perfeitamente que se favoreça o andamento de determinados processos e o não andamento de outros.
Mas permite coisas muito mais graves, que assumem as características de autênticos horrores nas situações em que pleiteiam pessoas débeis ou muito débeis.
É a chamada «justiça do meia bola e força», a despachar, sem o mínimo cuidado e normalmente sem contraditório.
Assistimos, há longuíssimo tempo, à telenovela do julgamento do chamado «Caso Casa Pia». No entanto, discretamente, com pequenas notícias nos jornais e sem quaisquer alaridos, vemos ser condenados a elevadíssimas penas de prisão cidadãos acusados de crimes idênticos, que foram julgados, no máximo, em meia dúzia de sessões.
No «Caso Casa Pia» os arguidos são patrocinados por advogados conhecidos pela sua competência e pela sua litigância que forçam a discussão até ao mais ínfimo pormenor. Naqueles outros casos, ninguém sabe quem defendeu e como defendeu os condenados.
Não valerá a pena que nos questionemos sobre a qualidade da justiça num e noutros casos?
Não indiciará isto a existência de duas justiças, com qualidades diversas?
Saindo desta área e passando para qualquer outra, encontramos, em todas elas o mesmo problema e as mesmas questões.
Se passarmos pelos tribunais e analisarmos, com alguma atenção, a postura dos operadores constatamos, com frequência que ela é absolutamente diferente se um arguido é um desgraçado que tem o patrocínio de um jovem advogado ou se é alguém com poder económico, patrocinado por uma estrela.
Até o tom de voz com as pessoas são tratadas é diferente.
É preciso analisar, com um mínimo de cuidada e recorrendo às regras das ciências sociais, alguns dos mimetismos que marcam o sistema.
Há em Portugal uma tendência que não é nova mas que se vem agravando.
Os juízes, que deveriam ser independentes, favorecem, normalmente as posições do Ministério Público e das polícias.
Há quem diga que isso acontece por mera comodidade. Pode ser…
Eu vou, porém, mais longe: penso que essa tendência decorre de uma relação social viciosa e promíscua.
Antigamente, nas comarcas de província, criticavam-se, com frequência os juízes que eram vistos quotidianamente a tomar café com este ou aquele advogado. Não é por nada, mas ocorria que, normalmente, o índice de sucesso dos advogados que tomavam café com os magistrados era maior do que o dos outros, acabando essa prática civilizada por introduzir um factor de concorrência negativa no mercado da advocacia.
Ninguém aceitaria que se fizesse uma reforma em que os advogados tivessem escritórios no mesmo edifício dos escritórios do juiz, à semelhança do que ocorre com o Ministério Pùblico. Mas a cegueira está tão aprofundada que ninguém repara no facto de essa promiscuidade existir, de forma estável, nas relações dos juízes com o magistrados do MºPº.
É da natureza humana que tenhamos dificuldade em dizer «não» às pessoas com quem vivemos no quotidiano. Complicar as relações pessoais, para quê?
Isto é especialmente grave quando há interesses antagónicos dos quais se faz, por causa disso, um intolerável «mélange».
Antigamente, quando passei por Coimbra, ensinavam os mestres que cumpria ao Ministério Público a defesa da Lei e a perseguição dos que a violavam, algemado sempre ao imperativo da busca da verdade material.
Hoje – diz-nos a experiência – que a justiça é um puzzling; o que e preciso é encontrar as pedras em encaixá-las, mesmo que elas não encaixem lá muito bem. E depois é preciso fazer algum marketing, para que os cidadãos tenham a ideia de que o sistema funciona, quando, na realidade, isso é uma grosseira mentira.
Há coisas que arrepiam e que ficam escondidas ou não são divulgadas, para que os cidadãos não se alarmem.
Num quadro como este, há muito que o Estado deveria ter tomado as medidas necessárias para separar o Ministério Público da magistratura judicial acabando com essa promiscuidade de os acusadores partilharem os mesmos espaços dos juízes e impondo-lhes uma contenção e um afastamento idênticos aos que são impostos à defesa.
Trata-se de uma questão de elementar decência. É manifestamente pornográfico esse quadro quotidiano da entrada do juiz e do agente do MºPº, na sala de audiências, pela mesma porta.
As pessoas são – elas mesmas – sérias e honestas. Mas há mimetismos, comportamentos sociais, cumplicidades, que não podem deixar de ser tomados em consideração.
Uma dos defeitos mais graves, de que este quadro é gerador, é o do simplismo (não confundir com Simplex) que consiste em encontrar «soluções» pragmáticas a qualquer preço, apenas para resolver as pendências e «despachar processos».
Temos que pôr termo a isso, sob pena de o sistema se transformar num triturador de pessoas e num gerador de monstros.
Apesar das rotinas, há gente que se indigna.
Vale a pena ler, a propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no chamado «Caso Joana» e, sobretudo, a declaração de voto que o acompanha.
Há questões que têm a ver com as mudanças da sociedade e que são hoje incontornáveis. Uma delas é a da necessidade de auditar o funcionamento da justiça, de acordo com regras de auditoria procedimental, que pertencem a um cosmos diferente do da própria justiça.
O recurso às novas tecnologias pode permitir a realização de autênticos milagres neste domínio.
Só um exemplo… Há decisões tão estapafúrdias proferidas por tribunais colectivos (especialmente pelos superiores) que nos deixam dúvidas sobre se todos os juízes analisaram os processos ou se se limitaram assinar de cruz a proposta do relator. Com a desmaterialização dos processos é perfeitamente possível registar dados sobre a intervenção de cada um dos juízes no que respeita ao estudo de determinado caso e ter uma noção minimamente razoável sobre a qualidade da sua análise, necessariamente dependente do tempo despendido.
Há uma regra perversa – e hoje repetida como um sol-e-dó nos recursos de toda a natureza – que diz que o objecto do recurso se define pelas conclusões.
Não é uma regra má se for interpretada em conformidade com o espírito do sistema.
O legislador quis que o recorrente, depois de alegar as suas razões, levasse, de forma sintética e precisa, às conclusões as razões de facto e de direito que motivam o pedido de alteração da decisão.
Parece-nos óbvio que as conclusões não podem sobreviver sem a explanação que as antecede e que, por isso mesmo, não podem os juízes ignorar tal explanação. Certo é que, em muitos casos, parecem fazê-lo, agarrando-se exclusivamente às conclusões e interpretando-as até de forma descontextualizada e contraditória com os documentos constantes do processo.
Noutras vezes – o que é ainda mais paradoxal – considerando as conclusões longas, mandam os relatores que as mesmas se reduzam, sem que para isso apresentem a mínima justificação, para além da extensão e da preguiça indiciária de ler textos de grande dimensão.
Quando isto acontece no topo da hierarquia pode ser dramático porque os erros se abafam, no fim de contas, com o fim das possibilidades de recurso.
O drama é especialmente grave nas situações em que se pretende a reapreciação da matéria de facto.
Nas mais das vezes há indícios de que as gravações não foram ouvidas ou, se o foram, isso aconteceu em circuito fechado, sem que houvesse mínima possibilidade de os interessados verificarem se tal audição, que não é uma mera formalidade, foi feita ou não.
Parece-me que é elementar distinguir duas realidades de diversa natureza:
uma que é a realidade jurídico-processual vista à luz dos parâmetros legais e das habilidades interpretativas de cada um dos operadores protagonistas do processo. Esta realidade tem sempre um fim que é formalmente perfeito…
outra é a realidade procedimental, vista à luz de critérios organizacionais, que vão mais fundo em termos de apreciação do cumprimento de normas de qualidade cuja eventual violação pode defraudar completamente a solução formal encontrada no plano jurisdicional.
Não podemos continuar a abafar os erros e a deixar-nos embalar por esse discurso da treta que usa o slogan da «independência do órgão de soberania que são os tribunais» para impedir todo e qualquer tipo de controlo, nomeadamente controlos de qualidade que só podem ser feitos por entidades externas.

17 junho 2006

16/6/2006

Manchete do «Jornal de Negócios»: MP arquiva 90% dos processos do Tribunal de Contas em 2005
Segundo o jornal, a taxa de arquivamento dos processos de efectivação da responsabilidade financeira remetidos pelo Tribunal de Contas (TC) ao Ministério Público (MP) disparou para 90% em 2005.
Segundo o jornal, em 2004 a taxa de arquivamento tinha sido de 66%, duplicando os níveis de 2001. De 276 processos remetidos pelo TC ao MºPº, foi requerido julgamento em apenas 33.
Não sabia que António Cluny representava o MºPº no Tribunal de Contas.
Soube-o hoje pelo jornal, que cita o conhecido sindicalista,
Segundo o Jornal de Negócios, António Cluny, explicou que «na maioria dos casos, os processos nem sequer incidem sobre a responsabilização financeira», sendo o arquivamento é apenas um acto administrativo, uma vez que o MP limita-se «a dar baixa estatística do dossier».
Estamos, obviamente, perante uma história mal contada.
Se é o próprio Tribunal de Contas quem dá vista ao Ministério Público, considerando a existência de irregularidades, porque razão o MºPº não investiga e não promove os adequados procedimentos, nomeadamentes os de natureza criminal.
Esse é um dos maiores mistérios da justiça portuguesa. Basta perder algum tempo e pesquisar os documentos do Tribunal de Contas para encontrarmos relatórios demolidores, indiciando, de forma muito precisa, responsabilidades, nomeadamente de natureza criminal.
Mas tudo parece que se fica por aí...
Não há, normalmente, notícia de que alguém venha a ser responsabilizado pelos factos contidos em tais relatórios.

11 junho 2006

11/06/2006

Uma das áreas em se vê, há vários anos, que a justiça está completamente falida é a das próprias falências, agora chamadas de insolvências.
Com isto se destrói o aparelho produtivo do país e não ganham nada os credores.
Quem anda nisto constata que são só golpadas, tudo sem um mínimo de critério e rigor, ganhando fortunas não se sabe quem e perdendo sistematicamente os credores.
Um dos casos mais chocantes que conheço é o da Copinaque, uma conhecida empresa gráfica da região de Lisboa, cujo processo se arrasta há anos.
Durantes os últimos anos, apesar de falida, a Copinaque continuou a produzir para uma empresa intermediária que não tinha uma máquina e que viveu à custa da massa falida até a levar à exaustão.
O liquidatário, que está obrigado a fazer frutificar os bens da massa falida, encheu-a de calotes, que agora se pretende que sejam pagos à custa da própria massa.
Tenho levado sopa em todos os requerimentos que tenho feiro ao tribunal, no sentido de se respeitar a lei ou, pelo menos, de se assegurar um mínimo de decência.
Fiz hoje mais um que reza, no essencial, o seguinte:
FULANA, credora e membro da comissão de credores da falida COPINAQUE – EQUIPAMENTOS PARA O DESENVOLVIMENTO DE EMPRESAS S.A., tendo tomado conhecimento do requerimento da Senhora Liquidatária Judicial, vem dizer o seguinte:
1. Não é verdade que a falida Copinaque se encontrasse em laboração ao tempo em que foi empossada.
2. A falida encerrou os seus livros e cessou o seu comércio na data do trânsito em julgado da sentença que decretou a falência, nos termos do disposto no artº 147º do CPEREF.
3. A sentença da falência priva imediatamente o falido da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes e futuros (artº 147º), determina o imediato encerramento dos livros do falido e a sua inibição para o exercício do comércio.
4. Coisa bem diversa e absolutamente autónoma é a decisão, que o liquidatário pode adoptar, no quadro dos poderes de administração da massa, de manter o estabelecimento em funcionamento.
5. A manutenção do estabelecimento da falida em funcionamento é um acto de administração ordinária, destinado a fazer frutificar os bens da massa e não a delapidá-los e dele tem que prestar contas, de forma autónoma por relação à contabilidade da falida que cessou, o liquidatário judicial.
6. Ora, nem o anterior liquidatário nem a actual prestaram contas do que receberam e do que pagaram no exercício dos poderes de liquidação e terão que o fazer, nos termos do disposto no artº 220º do CPEREF e com a forma que a lei processual impõe para a prestação de contas.
7. Tendo o anterior liquidatário decidido manter o estabelecimento em funcionamento, é óbvio que as despesas com tal funcionamento não podem ser pagas à custa da venda de bens da massa falida.
8. Só se justificaria tal manutenção em funcionamento se as suas receitas fossem suficientes para a cobertura das despesas.
9. E prevendo-se no protocolo citado pela Srª Liquidatária que todos os custos seriam assumidos pela N5, obvio se torna que, se o não foram, terão que ser pagas pela N5 e não pela massa falida.
10. A auditoria a que se procedeu tinha exclusivamente esse efeito de apurar que créditos tinha a massa sobre a referida empresa, créditos esses que a Srª Liquidatária está, obviamente, obrigada a cobrar.
11. No caso dos autos estamos perante uma autêntica descaracterização da titularidade do estabelecimento comercial que, na realidade, depois da falência foi gerido, explorado e dirigido pela N5, com a massa falida a pagar as contas, o que não pode aceitar-se.
12. Ao que parece, foi-se ao ponto de proceder ao pagamento com fundos da massa falida, de dividas de IVA e de prestações à Segurança Social que, na realidade, deveriam ter sido pagas pela N5.
13. Ao contrário do que vem dito pela Srª Liquidatária, estamos perante um péssimo resultado com um apuramento de receitas muito inferior ao valor das avaliações constantes do processo.
14. Acresce que a venda dos bens está longe de ser feita.
15. Há equipamentos que «desapareceram» e que têm que aparecer ou tem que ser encontrado o responsável pelo seu desaparecimento, tanto mais que foram apreendidos.
16. E relativamente a alguns melhores activos da massa – alvarás para produção de documentos para o sistema bancário e marcas – guarda-se o mais veemente silêncio, como se se quisesse que ninguém falasse disso.
17. O valor devido à liquidatária judicial só deve ser pago depois de a mesma prestar contas rigorosas da sua gestão, tanto mais que não é claro que tenha algo a receber, em vez de ter que pagar, no quadro da responsabilidade que assumiu relativamente à gestão da massa.
18. Nada autoriza, de outro lado, que para elaborar a contabilidade de uma massa falida fosse contratada uma empresa de contabilidade por valores superiores aos normalmente pagos por uma empresa em actividade.
19. A elaboração das contas da massa falida faz parte da própria actividade da liquidatária, que não tem que ter contabilidade organizada, estando apenas obrigada à boa regra do artº 1016º do CPC.
20. Muito simples:
a. O que o liquidatário tem que fazer é uma simples listagem em que lance a crédito os montantes recebidos e a débito os montantes pagos;
b. O que o liquidatário tem que fazer é suportar todos os lançamentos com os respectivos documentos.
21. A alegação de que os serviços administrativos são fornecidos pela Hereditastgest – Gestão e Prestação de Serviços carece de prova.
22. A Srª Liquidatária é advogada, inscrita na Ordem dos Advogados, com a cédula nº (...) do Conselho Distrital de Lisboa e o endereço de correio electrónico .......@adv.oa.pt .
23. Facto que justifica, por si, sabendo-se como funcionam os escritórios de advogados, legitima suspeita sobre a pretensão.
24. Lastimavelmente, a Exmª Colega ocultou, desde sempre, essa qualidade, talvez porque a lei considera o exercício da actividade de liquidatário judicial incompatível com a advocacia (artº 77º,1, al o do Estatuto da Ordem dos Advogados)
25. De qualquer modo, havemos de convir que 7.553,45 € de fotocópias é um exagero que, se não relevar outra coisa, deverá relevar pelo menos indícios de má gestão.

Termos em que, sem prejuízo de se peticionar oportunamente o que se julgar oportuno, se requer o seguinte:
a) Que seja indeferido o que vem requerido pela Srª Liquidatária Judicial;
b) Que a mesma seja notificada para prestar contas dos montantes recebidos e pagos e dos créditos gerados pela massa sobre terceiros;
c) Que se ordene à Srª Liquidatária para não proceder a qualquer pagamento à custa dos fundos da massa falida sem prévia análise e aprovação das contas.
Vamos esperar, para ver...

06 junho 2006

5/6/2006

Sou advogado de uma senhora teimosa, que é ex-trabalhadora de uma grande empresa, em tempos declarada falida.
A senhora em causa é credora da falida e membro da comissão de credores da dita.
Um dos últimos liquidatários judiciais, em vez de proceder à venda dos bens, como manda a lei, resolveu permitir que a fábrica continuasse a funcionar, a benefício de terceiros, causando um prejuizo incrível à massa, nomeadamente por via do desgaste dos equipamentos, de vultosas dívidas à segurança social e ao fisco e do desaparecimento de máquinas de valor elevado.
Aconselhei a minha cliente a apresentar queixa, pelo crime de infidelidada, previsto no artº 224º do Código Penal.
Apesar de serem inúmeros e esclarecedores os documentos, o bondoso liquidatário não foi pronunciado.
Recorremos... E agora veio o Tribunal da Relação de Lisboa dizer que ela não em legitimidade para se constituir assistente.
Entendi pedir ao Tribunal que aclarasse a decisão.


Exmºs Senhores Desembargadores:

FULANA recorrente nos autos à margem identificados, considerando obscura a douta decisão agora notificada, vem requerer a sua aclaração, o que faz nos termos seguintes:
1. A recorrente é credora e membro da comissão de credores da falida XXX;
2. Tem um crédito - reclamado e reconhecido – que há-de ser pago pelo produto da liquidação da massa falida;
3. Como está provado documentalmente, o arguido delapidou, literalmente, boa parte do património da massa falida, favorecendo objectivamente os interesses de um terceira empresa e reduzindo, por tal via, o património que é garantia das obrigações da falida em centenas de milhar de euros;
4. Consideram Vªs Exªs que o interesse ofendido é da própria massa falida e não da recorrente e que, por isso, não pode ser ela admitida a intervir como assistente.
5. O mesmo é dizer – e Vªs Exªs seguramente que não quiseram dizer isso – que um liquidatário judicial pode delapidar o património da massa falida a favor de quem bem entender, sem que alguém o possa censurar ou responsabilizar.
6. Ora, a massa falida é um património de afectação especial, vinculado exclusivamente ao pagamento dos credores da falida, como resulta dos artºs 147º e 148º do CPEREF.
7. Compete ao liquidatário judicial, nos termos do artº 134º do mesmo Código, «o encargo de preparar o pagamento das dívidas do falido, à custa do produto da alienação, eue lhe incumbe promover, dos bens que integram o património daquele».
8. Nos termos do artº 140º do mesmo Código, compete à comissão «fiscalizar a actividade do liquidatário».
9. Entende este Venerando Tribunal que a recorrente, como membro da Comissão, não tem o direito de se constituir assistente para apresentar queixa relativamente a actos que integram a prática de um crime de infidelidade, previsto no artº 224º do CP.
10. Entendendo, também, que, mesmo como credora não tem tal legitimidade.
11. Daí parece resultar que nenhum membro da comissão de credores enquanto tal e nenhum credor enquanto tal, apesar de prejudicado pela delapidação dos bens da massa falida por parte do liquidatário judicial, tem o direito de apresentar queixa contra o liquidatário.
12. E, numa outra vertente, que qualquer liquidatário judicial pode, com prejuízo dos credores delapidar a favor de terceiros os bens da massa falida, sem que os membros da comissão de credores enquanto tal ou qualquer credor possam constituir-se assistentes para apresentar queixa criminal contra ele, por tais factos.
13. É isso que se lê no douto acórdão recorrido.

Requer a Vªs Exªs que, porque tal entendimento parece ser contraditório com o que se retira da lei, clarifiquem o douto acórdão, assumindo ou denegando essa leitura e esse sentido.
Vamos aguardar o que vem daí...

02 junho 2006

Jorgen Mortensen (1935-2007) Posted by Picasa
Há um ano, pela hora em que escrevo, estava com Jorgen Mortensen e sua esposa Ana, comemorando o seu 70º aniversário.
Jantamos num restaurante perto de S. Pedro de Muel e prolongamos a conversa até tarde.
Falamos, sobretudo, sobre a justiça portuguesa, de que Jorgen Mortensen foi, talvez, a maior vítima que conheci até hoje.
Morreu há um mês e pouco, como eu previ naquela noite.
Jorgen Mortensen foi um dos personagens mais notáveis que conheci na minha vida.
Comprou ao Estado a velha Fábrica Irmãos Stephens, na Marinha Grande, revolucionando a indústria do vidro e introduzindo em Portugal o conceito de cristal sem chumbo. Excelente designer, ganhou reputação em todo o Mundo, vendendo vidro para os estabelecimentos mais sofisticados da América e da Europa.
A fábrica cresceu, pagando o empresário os melhores salários da Marinha Grande e entregando pontualmente ao Estado os impostos que eram devidos e à Segurança Social.
Com encomendas que não conseguia produzir, lançou-se na instalação de mais dois fornos, produzidos por uma das mais reputadas empresas da especialidade. Só que os fornos nunca funcionaram.
Um terceiro forno foi instalado por outra empresa e também não funcionou, forçando a Jorgen Mortensen Lda ao esgotamento de todos os seus recursos.
Até que um dia, quase por milagre, alguém tocou com uma peça na boca e sentiu sabor a sal.
Estava descoberto o segredo: a fábrica havia sido sabotada e estavam ali as provas disso, logo analisadas pelo laboratório da empresa.
Mortensen apresentou queixa na Polícia Judiciária, que não veio.
Apresentou uma queixa ao Ministro da Justiça, António Costa, que nada fez, para além de participar dele próprio à referida polícia, que contra ele abriu um processo criminal por ofensa à dignidade das instituições portuguesas, porque na carta dirigida ao ministro, Mortensen referia o Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano em que Portugal figurava como o país mais corrupto da Europa.
Defendi-o nesse processo, em que acabou por ser absolvido.
E procurei, sem nunca o ter conseguido, que as investigações sobre a sabotagem fossem realizadas. Não tive nenhum sucesso.
Gerara-se contra aquele homem, que sempre pagou os seus impostos e as contribuições devidas à Segurança Social, um complot que envolveu tudo o que era poder em Portugal.
Quando se descobriu a sabotagem, Jorgen Mortensen tinha encomendas prontas a sair da fábrica, cujos proveitos seriam suficientes para solver todas as responsabilidades.
Como a sabotagem não resultou, porque foi descoberta, o Sindicato dos Vidreiros convocou uma greve que conduziu à paralisação da empresa e «forças ocultas» despejaram camiões de entulhos na entradas da fábrica, impedindo que as mercadorias saíssem para o Harrods de Londres e para clientes americanos que as aguardavam.
Era então Ministro da Administração Interna o Dr. Nuno Severiano Teixeira sendo governador civil de Leiria o Dr. Carlos André.
Estes personagens, a quem cumpria garantir a ordem pública e a livre circulação de mercadorias nada fizeram para obstar essa selvajaria, intolerável num país da União Europeia.
Carlos André, depois de ter terminado o mandato de governador civil, haveria de ser presidente da Vitrocristal ACE, um agrupamento complementar de empresas de onde as empresas vidreiras foram «expulsas», para as suas posições serem tomadas pela respectiva associação, pelo IAPMEI e pelo ICEP.
Esta entidade sorveu milhões de subsídios públicos e está tecnicamente falida há muito tempo, a ver pelos seus balanços.
Mas mais do que isso, que esse esbanjar de dinheiros públicos, conseguiu arruinar a indústria do vidro da Marinha Grande, por via da destruição da concorrência entre as empresas.
Jorgen Mortensen era um homem de uma força colossal.
Alto, grandão, loiro como todos os dinamarqueses, era, acima de tudo, um homem de ideais e de princípios.
E foi essa a sua desgraça.
Abandonou a associação das empresas vidreiras no dia em que apresentou uma proposta que proibia os associados de piratear os modelos dos demais.
Ainda conseguimos levar a juízo uma acusação de contrafacção em que apresentamos peças rigorosamente iguais às suas. Mas era evidente, desde o princípio, que nunca obteríamos uma condenação nem nesse caso nem em qualquer outro em que os seus direitos houvessem sido violados.
Comecei a dar-lhe assistência ainda os trabalhadores estavam em greve.
Convenci-o a ele e à Ana a desistir de todas as queixas contra os trabalhadores que os haviam agredido.
Conseguimos uma trégua, que permitiu relançar a empresa, que estava exausta.
Negociou-se com os trabalhadores que eles recorreriam ao Fundo de Garantia Salarial até repor a tesouraria e que à medida que se fosse esgotando a garantia do fundo, haveria a empresa de gerar receitas para pagar os salários. E tudo foi meticulosamente cumprido.
Mas havia, claramente, um plano para destruir aquela empresa, que antes da greve, ao contrário de outras, não devia um cêntimo ao Estado e à Segurança Social.
Descobrimo-lo quando, dias antes da assembleia de credores no processo de recuperação de empresa que introduzimos em juízo, nos vieram dizer que a empresa seria «salva» mas sem os Mortensen, entregando-a a terceiros. Foi nesse sentido o projecto do gestor judicial, um homem que, entretanto, haveria de ser preso, envolvido no chamado escândalo das falências do Norte do país.
Em menos de duas semanas construímos um plano alternativo, com uma equipa dirigida pelo Prof. Fernando de Carvalho, da Faculdade de Economia de Coimbra.
De acordo com esse plano todos os credores seriam integralmente pagos, pedindo-se-lhes apenas um moratória. Os Mortensens envolviam nele todo o capital próprio e das suas empresas, nomeadamente os cobiçados terrenos da fábrica e uma mansão no norte do país.
Surpreendentemente – e ao contrário do que fez em inúmeras outras empresas – a Segurança Social opôs-se ao projecto, que foi aprovado pela maioria esmagadora dos credores.
O sindicato dos vidreiros absteve-se, como se estivesse interessado em que a empresa fosse mesmo lançada para o charco.
Na viva discussão que se travou na assembleia de credores, com Jorgen Mortensen olhando todos olhos nos olhos, tive a oportunidade de dizer e de demonstrar com números que estávamos a assistir a um terrível acto de gestão danosa, porquanto, como era previsível, se a Segurança Social se opusesse não receberia um cêntimo e perderia milhões, para além de lançar no desemprego mais de cem operários qualificadíssimos.
Depois disso foi um saga.
Era muito difícil manter a empresa em funcionamento quando o Estado e a Segurança Social estavam apostados, por obscuras razões, em a liquidar.
Havia encomendas, havia pedidos de todo o Mundo e Mortensen vendia os vidros mais caros da Marinha Grande.
Dramático é que não tinha crédito.
Arranjaram-se, entre amigos do casal e clientes, uns milhares de contos que permitiram capitalizar uma outra empresa, que passou a comprar toda a produção e a comercializar os vidros da Jorgen Mortensen.
Havendo encomendas, mas não havendo dinheiro para a energia e as matérias-primas, montou-se um novo forno de menor dimensão e pediu-se ao tribunal que autorizasse a empresa a reduzir o pessoal, como única medida de gestão possível naquele quadro de crise.
A magistrada detentora do processo considerou que era preferível manter 60 postos de trabalho do que liquidá-los a todos. E autorizou…
A esse trabalhadores nunca faltou o salário no último dia do mês. Os impostos e os descontos para a Segurança Social foram rigorosamente depositados.
Mas a empresa não podia sobreviver porque a Segurança Social se lhe opunha, contestando a moratória aprovada pela maioria dos credores e porque o sindicato preferia que todos fossem para o desemprego do que houvesse metade dos trabalhadores empregados.
A justiça da Relação de Coimbra, insensível a estes argumentos e à realidade da vida, deu razão a uma e a outro e inviabilizou o projecto de recuperação aprovado pela maioria dos credores, obrigando a juiz da primeira instância a alterar a sentença homologatória em termos de se exigir imediatamente o pagamento da totalidade dos fundos avançados pelo Fundo de Garantia Salarial e de reconhecer aos trabalhadores inactivos – alguns dos quais já estavam a trabalhar noutras empresas – o direito aos salários pelo tempo em que não trabalharam.
Quando anunciei estas decisões a Mortensen ele chorou como uma criança, antes de pôr um ar sereno e de me perguntar: «And now; what’s legal?...»
Na Marinha Grande há inúmeras empresas que não pagam os impostos e não entregam os descontos Segurança Social, sem que nada lhes aconteça. Mas este homem era incapaz de fazer isso não porque tivesse medo de ir preso (e seguramente que iria) mas por uma questão de civismo.
Disse-lhe que não poderia discriminar entre os trabalhadores que trabalhavam e os que não trabalhavam e que, para não ser incriminado, teria que pagar primeiro aos que não trabalhavam do que aqueles que trabalhavam.
Perante a constatação deste absurdo decidimos que só havia um caminho a seguir: pagar os salários até ao último cêntimo aos trabalhadores que trabalhavam e apresentar a empresa à falência.
E foi isso que se fez, quando a empresa tinha uma fabulosa carteira de encomendas, que não conseguia satisfazer e Mortensen dizia, coma convicção de um mestre esta frase singular que não me sai da memória: «acaba de fechar a melhor fábrica de vidros do Mundo e eu não posso fazer outra porque estes são os melhores vidreiros do Mundo.»
Quando, há um ano, comemoramos o seu 70º aniversário, Mortensen alimentava com as suas encomendas e os seus modelos outras fábricas da Marinha Grande, mas alimentava ainda a ideia de que alguém pudesse aceitar o desafio de pôr aquela fábrica a funcionar, que ele lhe garantiria a produção.
Sofria, sobretudo, com a ideia, cada vez mais sedimentada de que tudo aquilo era um maquiavélico processo para destruir o que fora a Fábrica Irmãos Stephens e transformar aquele espaço num apetecível projecto de especulação imobiliária.
Para o impedir e para se defender, acreditando que a Europa o podia salvar, ainda tentou denunciar (e denunciou) o enterramento de toneladas de escórias tóxicas numa área financiada pelo POLIS. Mandou recolher amostras, pediu análises no Canadá e apresentou documentos demonstrativos de que as escórias estavam ali, em montanhas de chumbo e cádmium, sendo sepultadas à beira de um curso de água, contra todas as regras.
Mas também aqui ninguém o ouviu, nem sequer as associações de ecologistas, como se estas próprias fizessem parte do que chamava «The corruption galaxy».
Morta a esperança de salvar aquela empresa, eu próprio me senti um derrotado e por isso pedi a Jorgen Mortensen que me substituísse e me evitasse mais deslocações à Marinha Grande, onde passei a ter dificuldade em encarar aquelas dezenas de vidreiros em que incuti esperança nos momentos de maior desespero.
Falei com ele depois do Ano Novo, tentando convencê-lo a montar uma fábrica na China e a comercializar as suas marcas a partir do Oriente.
Disse-me que não, alegando que um vidreiro demora vinte anos a formar e que já não tinha idade para isso, pois só obteria a mesma qualidade quando tivesse 90 anos. E repetiu-me: «a Marinha Grande tem os melhores vidreiros do Mundo. Já não são os meus, mas muitos aprenderam com os meus…»
Ana andava feliz, correndo de fábrica em fábrica para satisfazer as encomendas e o jovem Jorgen deixara voluntariamente os estudos para ajudar a família neste momento difícil.
Declarada a insolvência da empresa, ficara inequivocamente demonstrado que aquela família envolver todo o seu património no projecto de recuperação e reanimação da valha fábrica dos Stephens,
Julgava Mortensen que, depois de ter perdido quase tudo, mas feito a vontade à Segurança Social, que tudo apostou para o encerramento da empresa, viveria em paz.
Numa manhã de primavera apareceu-lhe na caixa de correio uma carta convocando-o para um processo criminal, por dívidas à Segurança Social.
É o que se chama uma carta assassina. Ana ainda correu com ele para Madrid, mas Jorgen não resistiu à cirurgia cardio-vascular a que foi sujeito.
Reduzido a cinzas, ficou por expressa vontade em Espanha, satisfazendo os desejos dos que, há vários anos, pediam o seu afastamento do País.
O antigo governador civil de Leiria tem todas as razões para estar feliz.
Os juízes e os demais magistrados para quem as queixas de Mortensen eram um incómodo, ao ponto de não andarem os processos, também devem ter respirado de alívio.
Eu fiquei triste porque o meu amigo Jorgen, uma das personalidades mais notáveis que conheci, se foi embora sem se despedir de mim.
Fazia ontem 71 anos.
Fui visitar o Vitor Trindade à cadeia de Caxias. Conheço-o há mais de vinte anos e aceitei defendê-lo no chamado «caso Passerrelle», do qual não posso, obviamente falar porque tudo está encoberto pelo famigerado segredo de justiça.
Estou cada vez mais convencido de que este instituto serve apenas para uma coisa: encobrir as próprias deficiências da investigação criminal e do sistema judiciário.
O Vitor foi preso no dia 7 de Janeiro, há quase cinco meses, não sabendo por que razão está preso.
Eu, como seu defensor, também não sei, porque em Portugal os advogados não têm acesso nem aos processos nem às provas durante um longo período em que o processo está sujeito a um regime de segredo de justiça.
Este sistema permite que pessoas inocentes sejam colocadas na prisão por longos períodos, sem que haja fundamento para tal e sem que os responsáveis por essa barbárie sejam responsabilizados.
Os factos que foram apontados a este homem são tão vagos que ele não pode contradizê-los. Isso torna a defesa impossível.
Depois, há em tudo isto um absurdo: se há fundamentos para ordenar a prisão de um indivíduos – ou seja, se há indícios suficientes para concluir que ele seria condenado na hipótese de ser levado a julgamento – porque não se deduz imediatamente uma acusação.
Quando digo imediatamente digo em dez ou quinze dias, que a liberdade é o valor mais precioso que um homem tem.
Infelizmente, esta não é uma excepção. A experiência diz-nos que há centenas, milhares de pessoas que cumprem milhares de anos de prisão preventiva e que depois são dados como inocentes.
E ninguém se indigna com isto.
É óbvio que só há uma maneira de resolver este problema: alterar as leis e responsabilizar pessoalmente os autores de «informações» que depois não se confirmam e os que as valorizam em termos de lhes darem a credibilidade suficiente para suportar a decisão de retirar a liberdade a uma pessoa.
Não faz nenhum sentido que os juízes não possam ser pessoalmente responsabilizados, no plano civil e no plano criminal, quando se verificar que não havia o mínimo fundamento sério para decretar uma medida de prisão preventiva.
Não há democracia com juízes irresponsáveis e imunes. A Justiça passa, antes de tudo, pela responsabilidade dos diversos operadores.
Saí comovido da cadeia… E revoltado, sem resposta para as perguntas que o Vitor me fez.
Claro que recorremos, mas passaram já quase cinco meses e não houve nenhuma decisão.
Interposto o recurso, o Ministério Público teve 15 dias para sobre ele tomar posição.
Chegado à Relação,o Ministério Público da segunda instância tem 10 dias para apor o seu visto ou tomar posição sobre o que foi escrito pelo magistrado da primeira instância, podendo as demais partes responder no prazo de dez dias.
Depois o processo vai ao relator, para exame preliminar, contando-se, na falta de prazo específico mais dez dias.
Depois de ter procedido ao exame preliminar, o relator tem mais 15 dias para elaborar um projecto de acórdão. Só depois é que o processo vai aos juízes adjuntos para vista e à sessão de julgamento.
Neste caso estão ultrapassados todos os prazos legais e eu não consigo explicar ao meu cliente como é possível os juízes desrespeitarem as leis sem que nada lhes aconteça.
A lei é chocante. Mas mais chocante é a completa insensibilidade dos homens perante esse valor que chama liberdade.
A ideia que tenho, muito consolidada ao longo de mais de duas décadas de advocacia, é a de que os juízes não têm o mínimo respeito nem a mínima consideração por esse valor, sobretudo na fase da prisão preventiva.
Por isso entendo que devem ser pessoalmente responsabilizados sempre que se vier a confirmar que não tinha nenhum fundamento sério a decisão que ordenou a prisão.
Este é, quiçá, um dos sintomas mais gritantes da falência da justiça.

01 junho 2006

01/06/2006

Seis horas de trabalho de um advogado com a minha experiência valem teoricamente 900 €.
Se a diligência tivesse sido feita em Lisboa, mesmo que com os atrasos do costume, eu nao debitaria à cliente mais do que 150 €.
Andei 687 km que custaram cerca de 207 €.
Almocei por 11 € (ainda é barato o interior de Portugal).
Não posso debitar a esta cliente mais de 350 €, o que significa que ganharei 132 € por um dia de trabalho.
A cliente fica a perder 250 €.
Eu fico a perder 768 €.
31/05/2006

Fui hoje ao Tribunal de Sátão para assistir à inquirição de três testemunhas arroladas num processo de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa em que é ré a esposa de um cidadão português natural de Rio de Moinhos.
Achei estranho que os senhores desembargadores da Relação de Lisboa tivessem deprecado a inquirição àquele tribunal. Neste tipo de processos, a Relação funciona como primeira instância e, por isso mesmo, as testemunhas deveriam ter sido inquiridas por vídeo-conferência.
Dispõe o artº 623º,1 do Código de Processo Civil:
«As testemunhas residentes fora do círculo judicial, ou da respectiva ilha, no caso das Regiões Autónomas, são apresentadas pelas partes, nos termos do n.º 2 do artigo 628.º, quando estas assim o tenham declarado aquando do seu oferecimento, ou são ouvidas por teleconferência na própria audiência e a partir do tribunal da comarca da área da sua residência ou, caso nesta não existam ainda os meios necessários para tanto, a partir do tribunal da sede do círculo judicial da sua residência.»
Parecia-me elementar que, funcionando o Tribunal da Relação como tribunal da primeira instância, neste tipo de processos, deveriam as testemunhas ser ouvidas por aquele sistema mas, lendo bem o texto e o seu conteúdo literal entendi nem sequer suscitar o problema.
Correria o risco de ver indeferido o pedido e de ser condenado numa violenta sanção ao abrigo de uma disposição discricionária que permite aos juízes fixar o valor das condenações em custas quase pelo valor que entendam.
Uma qualquer reclamação para o Tribunal Constitucional que venha a ser indeferida custa, quase por regra, 20 unidades de conta, o que representa 1.780 € ou, na moeda antiga, a módica quantia de 357 contos.
Já passou o tempo em que alguém que se sentisse com razão poderia recorrer até à última instância sem que para além de perder a razão perdesse também a fortuna.
Hoje isso não é possível e o modo como tudo isto se transformou é horrível, porque sintetiza, a meu ver dolosamente, um ânimo de denegação de justiça.
Já passou o tempo em que era dada aos cidadãos a hipótese de discutir no Tribunal Constitucional coisas tão «banais» como a qualidade da certificação dos equipamentos usados para medir o álcool ingerido. Hoje, essas pequenas coisas, de que dependem a qualidade da legalidade e da constitucionalidade são impossíveis para qualquer cidadão médio.
Gastei seis horas do meu dia na viagem para Sátão, quando a diligência que fui acompanhar não demorou mais de três quartos de hora.
Aproveitei esse tempo para ouvir música clássica e para reflectir sobre o estado da justiça, coisa que faço, quase sempre nas minhas viagens, como se isto fosse uma ideia fixa.
Talvez eu esteja doente, porque essa preocupação me acompanha para todo o lado quando não estou ocupado com qualquer coisa muito concreta e objectiva, geralmente conexa com tal estado.
Nasci e fui educado numa família rural marcada pelo rigor de uma religião que ninguém ousava discutir e pelo imperativo de uma fé que não podia pôr-se em causa. Aprendi na escola primária que os nossos navegadores saíram de Sagres e do Tejo, em caravelas marcadas pela cruz de Cristo, espalhando a fé pela quatro partidas do Mundo. As lições eram claras e muito objectivas num aspecto: os infiéis que não aceitassem a fé, transportada nas naus, eram combatidos e mortos como cães ou queimados vivos para que deles não restasse nada, nem sequer a alma, quando ousaram pôr em causa os livros sagrados.
Esse regresso às origens e às mensagens que me passaram na infância lembra-me sempre dois quadros de extrema similitude.
Um é o do esquecimento dessa história tão recente na incompreensão da manipulação da fé pelos regimes islâmicos. O fanatismo de tais regimes não tem nada de qualitativamente diferente do que influenciou muitos do grandes feitos pátrios, que nos ensinaram a admirar.
Outro tem a ver com o manto diáfano que cobre a justiça (que doravante sempre escreverei com letra minúscula, porque também é como minúscula que escrevo deus) e com o repisado slogan de que não podemos nem a devemos desacreditar.
Não é minha intenção desacreditar a dita, como não desacreditarei a senhora de Fátima ou a santa da Ladeira do Pinheiro.
Tenho o maior respeito por todas e por todos os seus devotos. Mas ninguém me pode pedir para acreditar em qualquer delas e muito menos na justiça porque com ela convivo e por ela me sinto enganado todos os dias.
Pensei, num dado momento, que deveria escrever um livro intitulado «Não acreditem na Justiça», com letra maiúscula e tudo, panfletário, subversivo. Desisti por duas razões: porque seria, de imediato, acossado pelos crentes e porque talvez me levassem mesmo aos tribunais da mesma, onde ela se vingaria em toda a sua dimensão.
Para que não haja confusões, faço questão de distinguir entre a Justiça com letra maiúscula e a justiça com letra minúscula.
A primeira continuo a amá-la como ideia e ideal eterno, tão bem configurado na trilogia de Ulpiano que define o Direito como «honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere».
Fixo-me no opúsculo de Rudolf von Ihering intitulado «Luta pelo Direito» publicado em Gottingen em 1891: «O fim do direito é a paz; o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sob a ameaça da injustiça - e isso perdurará enquanto o mundo for mundo – ele não poderá prescindir da luta».
Recordo com saudade as lições de Direito Romano do Padre Sebastião Cruz na Faculdade de Direito de Coimbra. Muitos conceitos e alguns erros foram para mim de grande utilidade ao longo mais de quase três décadas de advocacia.
Um dos erros mais chocantes reside numa citação frequente que O Padre Sebastião fazia do romanista espanhol Álvaro Dors e que dizia o seguinte: «Justitia es lo que hacen los jueces».
Não tenho nada contra os juízes, em cuja classe conto com muitos amigos e pessoas que sinceramente me estimam. Todos os dias recebo decisões que considero justas ou, pelo menos toleráveis. Naturalmente não tenho que as aplaudir nem que dar os parabéns a quem as proferiu.
Mas recebo também, com muita frequência, decisões imperfeitas e, por isso, necessariamente iníquas. Elas são um elemento importante do que considero a falência da justiça; mas não são, nem de perto nem de longe, o principal elemento.
Não é possível a um juiz proferir decisões perfeitas com o actual sistema processual e com dois ou três mil processos.
A falência do sistema começa por aí. E é preciso discuti-la, analisá-la em todos os seus elementos e encontrar uma alternativa.
Este sistema de justiça não serve a ninguém – muito menos à Justiça com letra grande – e é preciso encontrar-lhe alternativas, discutindo com objectividade e clareza os problemas concretos em vez de inventar continuas fugas para a frente, que não levarão a nada.
O que me proponho fazer nos meus próximos escritos são reflexões sobre questões e situações concretas e objectivas que considero exemplares dos males que afectam o sistema e o tornam irrecuperável.
Imaginam os meus leitores a amargura dos meus clientes quando lhes digo que não acredito na justiça que temos e que acredito ainda muito menos nessa justiça de pé descalço que se vai implementando no País, como meio alternativo.
Hoje, recorrer aos tribunais – seja no plano cível, seja no plano criminal – importa riscos terríveis.
Importa o risco de perder a razão quando, inequivocamente, se tem razão, porque é cada vez maior a incerteza das decisões.
Digo isto com a amargura de quem tem muitas vezes a vontade de queimar os livros de mestres tão brilhantes como Cunha Gonçalves, Dias Ferreira, Manuel de Andrade ou Mota Pinto, Ferrer Correia ou Isabel de Magalhães Colaço, Eduardo Correia ou Jorge Figueiredo Dias. Só não o faço porque me são precisos para uma actividade que antes me enfurecia e hoje me faz rir a bandeiras despregadas: a do confronto de conceitos que tínhamos por estabilizados com soluções que mostram pelo menos uma grande ignorância desses autores ou doutros que lhes contestaram as ideias, para entrarem no campo de um construtivismo sem bases teóricas, eventualmente forçado pela pressa ou pelo menor cuidado.
Dramático é o facto de as más decisões contaminarem o ambiente, atento esse vicio velho de recorrer ao argumento da autoridade dos outros tribunais, hoje facilitado com o copy-paste que a informática nos deu de bandeja.
Voltando à amargura dos tais clientes, o que lhes passei a dizer – eu que fui um viciado litigante – é que é preciso prevenir, fazer contratos perfeitos, evitar todos os focos geradores de litígios.
No que se refere à área criminal, aconselho-os a escolherem com todo o cuidado as companhias, porque, mesmo assim, correm o risco de se verem envolvidos numa embrulhada de que provavelmente nunca sairão.
Não sou um criminalista porque decidi, em 1982, afastar-me desse tipo de casuística, ciente de que morreria de enfarto num tribunal, perante as barbaridades que ofendem tudo o que aprendi na minha velha faculdade. Acompanho, porém, o desenvolvimento do direito criminal e não recuso, em nenhuma circunstância, a defesa de um amigo ou de uma pessoa por quem tenha especial consideração.
Considero a realidade do direito criminal que se pratica no nosso País absolutamente chocante e prometo escrever sobre isso, porque me parece que os portugueses não têm a mínima noção do grau de degradação a que chegaram as instituições.