30 setembro 2008

A verdade e os enganos

Não consta que alguma vez a senhora Dona Branca tenha falhado um compromisso com algum dos seus depositantes antes da ida do ministro Ernâni Lopes à televisão.
A velha senhora actuava no mercado tomando o dinheiro de uns por um juro e emprestando-o a outros, com adequada prudência, por outro.
Jogava com as mesmas habilidades e os mesmos truques de décalage temporal com que jogam os banqueiros e nunca teria chegado à falência se não aparecesse o poder a dizer que ela não merecia confiança.
Para o bem e para o mal, o tempo tem uma influência milagrosa nas operações financeiras.
Por ele passam tanto a verdade como a mentira, que podem ser uma e a mesma coisa.
Infelizmente, passam pelo tempo, também, as leis e as suas interpretações, sendo inevitável que, nalguns quadros, só a História consiga trazer à tona a verdade que a manipulação matou sacrificando gerações.
Para além do tempo, há um outro valor inestimável em matéria de negócios financeiros, que é o da confiança.
Podemos e devemos ter confiança mesmo em quem nos engana, porque perder a confiança pode significar perder tudo.
Se perdermos a nossa, perdê-la-ão também os outros e com isso perderemos todos.

Irresistivel...

Não resisto à tentação de citar-reproduzir João Paulo Guerra, sobre o capitalismo-ml
Na América, o governo federal está a intervir em sucessivos gigantes bancários, numa modalidade mitigada de “nacionalização” como a que foi decidida e ensaiada em Portugal em 1974 contra a “sabotagem económica”. Em 1974, perante os acontecimentos em Portugal, a América puxou logo de todo o arsenal da guerra-fria receitado para usar a quente: esquadra da NATO a pairar ao largo da costa, mobilização dos aliados, boicote económico e chantagem financeira, visitas do general Vernon Walters e nomeação do embaixador Frank Carlucci, manipulação de partidos, de sindicatos e da opinião pública, campanha de propaganda delirante, redes terroristas e separatistas clandestinas, etc. Valia tudo. Mas, afinal, a intervenção do Estado na economia não morde. Muito pelo contrário. O que é verdadeiramente grotesco é que o capitalismo mais selvagem, apesar de desconfiado, está a suspirar de alívio. Medidas de inspiração socialista – que apenas socialistas excêntricos como o coronel Hugo Chavez ousam hoje tomar apesar da ameaça de represálias – estão a segurar o capitalismo pelos cabelos para evitar o descalabro iminente. O Fundo Monetário Internacional apressou-se a aplaudir a iniciativa. Quem poderia prever um FMI-ml? Mas não é que o mundo esteja de pernas para o ar: é o sistema que está de pantanas. A especulação tomou o freio nos dentes. O capitalismo ficou com a “bolha”. Wall Street está ao nível da Dona Branca. Perante “a catástrofe iminente” quais “os meios de a conjurar”, perguntaria Vladimir Ilitch Lenine? E o velho Karl Marx responderia: “obviamente, nacionaliza-se”.

29 setembro 2008

Homenagem à Srª Dona Branca...


Dona Branca dos Santos (1902-1992) merece uma especialíssima homenagem nestes tempos de crise financeira.

Socorro-me da Wikipedia para sintetizar o essencial da história dessa mártir. Na infância, que ocorreu nos últimos anos da monarquia, aprendeu a conhecer a pobreza, que se agravou na segunda década do seculo XX, com a 1ª Grande Guerra.
Maria Branca dos Santos, nasceu numa família humilde e bastante pobre.
Recebe formação escolar muito básica (sendo praticamente analfabeta mas com grande capacidade de raciocínio matemático) e forte apetência para os negócios.
Desde cedo se iniciou como banqueira: guardava o dinheiro da venda das varinas ao longo do dia recebendo ao anoitecer uma pequena "compensação" pelo "depósito". Conhecida como pessoa honesta, ganhou um carisma que a tornou popular junto de outras classes de comerciantes, especialmente de ambulantes.
No decorrer dos anos 50, desenvolveu uma actividade bancária clandestina. Estrategicamente começou a atribuir juros a quem lhe confiasse as suas economias. Quanto mais elevada fosse a importância, mais alta era a taxa de juro remuneratória.
Quem lhe entregasse as suas economias, recebia, no fim do período convencionado, o valor do depósito acrescido de 10%, chegando essa taxa a ser a taxa mensal.

Como está explicado na Wikipedia, a metodologia resultava com o aparecimento diário de novas pessoas e operava do seguinte modo:
- ontem pessoa 'X' depositou 20 contos. - hoje a pessoa 'Y' depositou 20 contos (2 contos iriam para pessoa 'X' - que ficava logo já com os juro mensal). E assim sucessivamente uma vez que o cliente de ontem recebia os juros do(s) cliente(s) do dia seguinte. Uma vez que tanto o cliente 'X' bem como o cliente 'Y' não procediam o levantamento da totalidade do depósito facilmente se gerava um fundo sustentável e seria aumentando significativamente se invés do levantamento os clientes voltariam a depositar. O empréstimo que concedia era rigorosamente estudado e com juros elevados que chegavam até metade do empréstimo.
Reporta a Wikipedia que ao longo de décadas sempre funcionou este esquema, pois semanalmente apareciam dezenas de cliente novos vindos de todo o país.

Isto obrigou à criação de novos escritórios espalhados por Lisboa e por todo o país visto que começaram a ser notórias as filas à porta do seu escritório de Alvalade.

Para isso contou com a colaboração de familiares e amigos íntimos que eram aliciados e estimulados pela entrada de quantias exorbitantes de dinheiro vivo.

A Março de 1983, o semanário "Tal & Qual" divulgou a actividade e os métodos de Dona Branca, que passou a ser notícia na imprensa internacional.
D. Branca conseguiu em muito pouco tempo quadriplicar o seu poderio económico. Centenas de pessoas dirigiam-se para aos seus escritórios para obterem retribuições do seu capital com juros de 10 % ao mês (120% ao ano) que fazia concorrência aos juros oficiais da banca, que rondavam os 30 % ao ano.
A corrida aos depósitos na banca oficial para a entrega dos fundos à "Banqueira do Povo" fez recear pela bancarrota. O Ministro das Finanças de então, Ernâni Lopes, estratégicamente, foi à televisão avisar os portugueses os portugueses, dizendo-lhes que a actividade de Dona Branca era ilegal.

O resultado foi o mesmo que ocorreria se um ministro das Finanças qualquer fosse à televisão informar que os depositantes de determinado banco corriam o risco de perder os seus fundos.

Os depositantes acorreram aos escritórios de Dona Branca para reaver o seu dinheiro, gerando-se uma confusão incontrolável.

Noticiaram os jornais que a confusão permitiu que cooperadores oportunistas tenham retirados sacos e sacos de dinheiro dos escritórios da idosa senhora. Quando a polícia acorreu à sua residência ainda conseguiu, apesar disso, recuperar 60 mil contos em dinheiro vivo e cheques no valor de 90 mil contos.

Aqui se iniciou um longo processo judicial.

A velha senhora, como garantia dos depósitos feitos nos seus escritórios, emitiu milhares de cheques a favor dos seus clientes, sendo centenas deles devolvidos por falta de provisão.
Em 8 de Outubro de 1984 foi presa preventivamente e internada na Cadeia das Mónicas, em Lisboa.
Foi acusada, com mais 68 arguidos, por crimes de associação criminosa, emissão de cheques sem cobertura, burla agravada, falsificação e abuso de confiança.

O julgamento realizou-se em 1988 no Tribunal da Boa-Hora e durou mais de 1 ano. A final, Dona Branca dos Santos foi condenada numa pena de prisão de 10 anos, pelo crime de burla agravada.
A Justiça condoeu-se do seu estado de saude e da sua idade avançada e reduziu-lhe a pena, devolvendo-a à liberdade, pouco tempo depois da condenação. Acabou os seus dias num lar, onde morreu cega e ironicamente na miséria. Foi a enterrar ao Alto de São João acompanhada de apenas 5 pessoas.

Uma anjinha... comparada com os gabirus que geraram a crise dos tempos que correm.

Que sociedade tão feia....

Às vezes tenho nojo da sociedade em que vivo e das pessoas que nela têm especial notoriedade. Encaixo-me no sofá ou levanto-me e abro os braços, com uma atitude de conformação ou de revolta, conforme os casos.
A televisão está cheia de atrasados mensais, de gente feia, de gente horrível.
Há programas que seriam - literalmente - pornográficos, se não constituissem excelentes documentos para a história do nosso subdesenvolvimento.
O debate sobre o divórcio, ocorrido hoje na RTP1, é um fantástico exemplar.
Há muito tempo que não via coisa tão horrorosa.
De arrepiar os cabelos...
Até no guião...
«Divórcio! O que muda com a nova lei…O fim da culpa…O frente-a-frente entre os que concordam e os que discordam! O veto político do Presidente. A fractura ideológica. Divórcio sem culpa, no regresso do Prós e Contras à Casa do Artista, segunda-feira à noite na RTP. »

03 setembro 2008

A justiçazinha

Telegrama da Agência Lusa:
Lisboa, 02 (Lusa) - O ex-dirigente socialista Paulo Pedroso ganhou a acção interposta contra o Estado por prisão ilegal no processo da Casa Pia, anunciou hoje o seu advogado, Celso Cruzeiro.
Na sentença, de que Celso Cruzeiro e Paulo Pedroso tiveram hoje conhecimento, o juiz considera que a detenção do ex-dirigente socialista foi um "erro grosseiro".
"A fundamentação do acórdão de condenação do Estado é baseada no preceito que indica que o Estado através do seu agente, o juiz, cometeu um erro grosseiro, uma negligência grave na decisão que aplicou a prisão preventiva a Paulo Pedroso", adiantou Celso Cruzeiro.
O advogado salientou que embora tarde, esta decisão envolve o "reconhecimento explícito e inequívoco de que foi cometido um erro grave".
Na sentença, de mais de 100 páginas, o juiz atribuiu uma indemnização de cerca de 100 mil euros por danos morais, "bastante aquém" dos 600 mil euros pedidos na acção contra o Estado.
"Não posso dizer com rigor a quantia pois abrange verbas de natureza diferente. Nos danos patrimoniais, antigos danos morais, a verba é de 100 mil euros porque é uma verba fixa que não depende de operações de aritmética", contou, referindo que ficam "aquém dos 600 mil euros pedidos".
Celso Cruzeiro frisou que "esta decisão quer dizer que o agente jurisdicional do Estado que naquele momento avaliou o contexto e aplicou a prisão preventiva [Rui Teixeira] não actuou apenas com negligência mas com grave negligência e com grosseira violação do dever de cuidar".
Questionado sobre se vai recorrer da decisão, Celso Cruzeiro referiu que vai agora estudar com maior rigor a sentença e depois tomará uma decisão.
No início do julgamento, a 07 de Janeiro, Paulo Pedroso atribuíra a "um imperativo ético" a decisão de colocar uma acção cível contra o Estado português por prisão ilegal no processo Casa Pia.
Na altura, o ex-deputado socialista e ministro do Trabalho e da Segurança Social de António Guterres sublinhara que o seu "sofrimento é irreparável", mas que "a justiça deve ser responsabilizada pelos erros que cometeu".
Paulo Pedroso ficou em prisão preventiva depois de ter sido ouvido pelo juiz de instrução Rui Teixeira, no dia 21 de Maio de 2003, no âmbito do processo Casa Pia, acusado de crimes de abuso sexual de menores por quatro jovens.
Nesse dia, o juiz Rui Teixeira tinha ido à Assembleia da República pedir o levantamento da imunidade parlamentar do então deputado socialista e notificá-lo para prestar declarações.
Paulo Pedroso foi libertado quatro meses e meio depois, a 08 de Outubro, por decisão do Tribunal da Relação, e foi recebido de forma apoteótica pelo PS no Parlamento.
Nesse mesmo ano, em Dezembro, o MP acusou formalmente o ex-deputado socialista de 23 crimes de abuso sexual, mas em Maio de 2004, a juíza de instrução criminal então com o processo decidiu não levar Paulo Pedroso a julgamento.
Ano e meio depois, em Novembro de 2005, e depois de um recurso do Ministério Público, o Tribunal da Relação viria a confirmar a decisão da juíza.
É um passo em frente, com algo de inovador, no plano da humildade que anda fugida da justiça.
A nossa justiça é uma miséria, até nisto.
Este homem foi completamente destruido, em termos que tornam absolutamente impossível a recuperação da sua imagem. Era o número 2 do principal partido da oposição. E pretende-se ressarcir o resultado do erro grosseiro de que foi vítimas com uma indemnização de 100.000 euros, poucos dias depois de, por erros menores, a PT ter sido condenada, pela autoridade da concorrência a pagar uma coima de
«A Portugal Telecom foi multada pela Autoridade da Concorrência em mais de dois milhões de euros por abuso de posição dominante no âmbito de um processo de contra-ordenação.
A Autoridade da Concorrência considerou ter existido «abuso de posição dominante» da operadora nos «mercados grossistas de aluguer de circuitos».
Em causa estão os descontos do tarifário de aluguer de circuitos que a PT praticou ao longo de um ano, entre Março de 2003 e o mesmo mês de 2004.
O regulador entendeu que à data dos factos a PT era, na prática, o único fornecedor daqueles serviços com uma quota de mercado superior a 86 por cento.»
Que valores são estes? Ou que desvalores?
O Estado é menos responsável do que a Portugal Telecom? A destruição de uma pessoa vale menos do que a cobrança de uns cêntimos a mais ou a menos por consumidor?

Um jogo de vinganças

Escreve hoje o Diário de Notícias em editorial:



«Os factos são estes: Paulo Pedroso esteve formalmente acusado (Dezembro de 2003) pelo Ministério Público da prática de 23 crimes de abuso sexual, no âmbito do processo Casa Pia.

Antes, havia estado quatro meses e meio em prisão preventiva, entre 21 de Maio e 8 de Outubro de 2003. Em Maio de 2004 a juíza de instrução que tinha o processo decidiu não haver indícios suficientes para levar Paulo Pedroso a julgamento. Essa decisão foi ratificada pelo Tribunal da Relação em Novembro de 2005.

Já este ano o DIAP de Lisboa, por seu lado, decidiu arquivar a queixa de Paulo Pedroso contra os seis jovens cujos testemunhos tinham estado na base da detenção e acusação do ex-dirigente do PS.

A notícia de ontem segundo a qual terá sido cometido um erro grosseiro na detenção de Pedroso é coerente com esta sequência de decisões subjectivas, mas que todos os juízes, em alturas diversas, com certeza tomaram em consciência e com responsabilidade. Infelizmente, e apesar disso, este dramático processo é cada vez mais uma questão de fé entre aqueles que como Marinho Pinto, bastonários da Ordem dos Advogados, pensam que se tentou "decapitar a direcção do PS" e os muitos cidadãos que se interrogam sobre as razões que terão levado a que as violações às crianças da Casa Pia, incontestáveis e incontestadas, não tenham sido suficientes para um processo transparente, rápido e certeiro.

Nos Açores, num processo de contornos semelhantes mas envolvendo anónimos cidadãos, tudo aconteceu depressa, sem erros e com decisões acima de qualquer suspeita.

O processo Casa Pia há-de seguir o seu curso e daqui a uns anos a história projectará sobre ele a devida luz e classificará devidamente estas decisões que agora são "boas" e "más" consoante agradam ou não aos envolvidos.

Neste caso concreto há ainda duas reflexões, e uma pergunta, a fazer. A primeira das reflexões é a de que o cidadão Paulo Pedroso tem direito ao seu bom nome e a lutar por aquilo que considera ser a reposição da verdade.

A segunda é a de que não foi a prisão preventiva, que agora passa por ter sido um erro grosseiro, que lançou o anátema sobre Paulo Pedroso - esse adveio das acusações e dos depoimentos que o juiz de instrução se viu obrigado a trabalhar.

E a pergunta, que percorreu todo o dia de ontem, é esta: deve o Estado recorrer? - e é uma pergunta espantosa.

Por que razão o Estado, cuja tradição é recorrer de tudo, desde a tragédia do Aquaparque à verba devida à família da criança que caiu num esgoto aberto no Seixal, não iria recorrer desta vez?

Não seria difícil imaginar o que as pessoas que em Portugal viveram intensamente este caso, e não foi apenas uma, foram milhões, eventualmente pensariam.»


Não faço, propositadamente, comentários. É a comunicação social que temos, sem a mínima condição para a percepção da fenomenologia da justiça.

Ressalvado um ou outro jornalista, a generalidade não percebe népia do que se passa nos tribunais, escrevendo ao sabor da corrente e aproveitando o espaço que tem (num sistema de comunicação que é completamente fechado) para saldar os ódios dos próprios pequenos príncipes.

Sei do que falo, porque fiz toda a carreira, de estagiário a director de um diário. Mas fico triste quando constato que o jornalismo em Portugal, no século XXI, é isto: uma peça adicinal num jogo de vinganças.