30 outubro 2007

A propósito do novo regime da nacionalidade portuguesa: como se destrói uma reforma

Aplaudi, em devido tempo, a recente reforma do regime jurídico da nacionalidade portuguesa.
Mal sabia eu que teria que, passados alguns meses, pedir desculpa àqueles a quem enganei, porque fui enganado...
O essencial da matéria está na carta que dirigi nesta data ao Secretário de Estado das Comunidades, António Braga:
Exmº Senhor
Dr. António Braga
Distinto Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas


Como é do seu conhecimento, dou uma especial atenção, no exercício da minha profissão de advogado, às comunidades portuguesas da Diáspora.

Há mais de quinze anos que, primeiro individualmente e depois na sociedade de advogados em que participo, assistimos portugueses e luso-descendentes de todo o Mundo, suprindo, em muitas situações as lacunas a que a nossa frágil estrutura consular, com falta de meios e de recursos humanos, não tem capacidade para responder.

Conhece Vª Exª as minhas críticas mas também os meus aplausos relativamente às medidas que se anunciaram como inovadoras.

Conhece também os contributos que procurei dar para as recentes reformas, todos eles baseados na experiência acumulada e em princípios muito claros, alguns deles plasmados há vários anos em legislação vigente.

Sempre defendi que deveriam coexistir serviços públicos de qualidade, acessíveis a qualquer cidadão, como serviços privados, como os que são prestados por advogados, correspondendo ao legítimo direito de representação de que também todos os cidadãos são titulares nas sociedades democráticas.

Aplaudi, imprudentemente, uma boa parte das alterações introduzidas no direito da nacionalidade portuguesa com a Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de Abril, que alterou a Lei da Nacionalidade e com o Decreto-Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro, que instituiu o novo Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.

Escrevo-lhe para lhe falar da completa decepção que está a ser a execução desses normativos e para a autêntica fraude à lei que tal execução constitui.
Cito o preâmbulo do Decreto-Lei nº 237-A/2006:

«(…) No domínio da simplificação de procedimentos, salienta-se que os autos de declarações para fins de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade, lavrados nas conservatórias do registo civil ou nos serviços consulares portugueses, se tornam agora facultativos, sendo criados meios alternativos para que os interessados possam remeter as suas declarações directamente para a Conservatória dos Registos Centrais. Trata-se, sem dúvida, de uma medida de grande impacte ao nível da facilitação da vida quotidiana de muitos cidadãos, neles se incluindo os emigrantes portugueses e as respectivas famílias, que passam a dispor da possibilidade de requerer actos de nacionalidade sem ter de se deslocar a Portugal ou a um posto consular. Além disso, prevê-se a criação de extensões da Conservatória dos Registos Centrais, disponibilizando-se, assim, novos balcões de atendimento, com competência para a instrução dos pedidos de nacionalidade. Consagra-se, ainda, a possibilidade de serem designadas entidades públicas, associações ou outras entidades privadas para prestar informações sobre o tratamento e a instrução dos pedidos de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade e encaminhar as respectivas declarações e requerimentos para a Conservatória dos Registos Centrais. No que se reporta à eliminação de actos inúteis, refere-se que os registos de nacionalidade, tradicionalmente lavrados por assento, são, na maior parte dos casos, transformados em registos por mero averbamento e, bem assim, é eliminada a publicação no Diário da República do despacho de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização. Salienta-se, ainda, o facto de os interessados estarem genericamente dispensados de apresentar certidões de actos de registo civil nacional, que devam instruir os pedidos de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade, bem como de apresentar outros documentos, designadamente o certificado do registo criminal português e documentos comprovativos da residência legal no território português, os quais se referem a informação de que a administração já dispõe e que passam a ser oficiosamente obtidos. Por outro lado, atribuem-se novas competências aos ajudantes e escriturários da Conservatória dos Registos Centrais promovendo, deste modo, a desconcentração de competências, o que permite uma capacidade de resposta acrescida. Adoptam-se, ainda, várias disposições destinadas a permitir que os pedidos de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade possam, no futuro, ser efectuados por via electrónica»(…).

Tudo isto não passa de uma miragem e, por isso mesmo, de uma enorme mentira política.

As boas ideias que a reforma anunciou estão a ser completamente destruídas por uma postura burocrática absolutamente inaceitável, que justifica a imediata tomada de medidas, sob pena de o sistema entrar, a breve prazo em convulsão.

Um processo de atribuição de nacionalidade portuguesa ao filho de um cidadão português demorava antes da reforma entre 60 e 90 dias e nós achávamos muito, como realmente é.

Tais processos, desde que bem instruídos, não suscitam nenhuma dificuldade especial e deveriam ser concluídos no prazo máximo de uma semana, prejudicando-se, ainda assim, os emigrantes por relação aos residentes no território, que conseguem fazer um registo de nascimento no mesmo dia.

Com um processo bem instruído, o registo atributivo da nacionalidade portuguesa não deve demorar (em termos de tempo dispendido) mais de 60 minutos, mesmo que seja processado por um funcionário que escreva apenas com dois dedos.

A verdade é que os processos mais simples tendem actualmente a ter uma duração da ordem dos seis meses.

Os burocratas da Conservatória dos Registos Centrais lançaram essa repartição no caos que todos conhecemos, o que levou a que, na reforma de 1997 (Decreto-Lei nº 37/97, de 31 de Janeiro) se alterasse o Regulamento da Nacionalidade então vigente, retirando a essa repartição a competência para a instrução dos processos de nacionalidade portuguesa, que passaram para as conservatórias do registo civil no que se refere aos residentes em Portugal e nos países de língua portuguesa e aos consulados de Portugal, relativamente aos residentes noutros países.

Critiquei durante anos essa medida discriminatória, a que este Governo acabou por pôr termo, colocando todos os portugueses e luso-descendentes em pé de igualdade.

A reforma fez-se contra a vontade dos dirigentes da Conservatória dos Registos Centrais que estão, inequivocamente, a sabotá-la aproveitando o que continuo a pensar que foi um excesso de boa fé e de confiança do legislador.

Dispõe o artº 41º do actual Regulamento da Nacionalidade Portuguesa:
«1 - A Conservatória dos Registos Centrais, no prazo de 30 dias contados a partir da data da recepção das declarações para fins de atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade:
a) Analisa sumariamente o processo e, caso o auto de declarações contenha deficiências ou não se mostre devidamente instruído com os documentos necessários, notifica o interessado para, no prazo de 20 dias, suprir as deficiências existentes, bem como promove as diligências que considere necessárias para proferir a decisão;
b) Analisa sumariamente as declarações que tenham sido prestadas nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º e, não sendo caso de indeferimento liminar, procede de acordo com o previsto na alínea anterior.
2 - Concluída a instrução, o conservador profere decisão, no prazo de 60 dias, autorizando a feitura do registo, sendo caso disso.
3 - Se, pela análise do processo, o conservador concluir que vai ser indeferida a feitura do registo, notifica o interessado dos fundamentos que conduzem ao indeferimento do pedido para, no prazo de 30 dias, este dizer o que se lhe oferecer, devendo dessa notificação constar a hora e o local onde o processo pode ser consultado.
4 - Decorrido o prazo previsto no número anterior, e após ter sido analisada a eventual resposta do interessado, o conservador profere decisão fundamentada, autorizando ou indeferindo a feitura do registo.
5 - Nos casos de aquisição da nacionalidade, por efeito da vontade ou por adopção, o disposto nos números anteriores é aplicável, com as necessárias adaptações, por forma a não ser prejudicado o direito de oposição.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, aos processos de atribuição da nacionalidade, neles se incluindo a inscrição de nascimento no registo civil português, bem como de aquisição da nacionalidade por efeito da vontade ou por adopção e de perda da nacionalidade, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no Código do Registo Civil, excepto no que se refere à contagem dos prazos e sua dilação, caso em que se aplica subsidiariamente o
Código do Procedimento Administrativo.»

Os processos estão a ficar literalmente parados durante 90 dias – ou seja 30 dias para a análise sumária e 60 dias para que o conservador profira despacho autorizando o registo, o que, na generalidade dos casos não tem a mínima justificação, atenta a simplicidade deste tipo de processos quando se encontram bem instruídos.

Tudo isto é agravado pelo facto de esses 30 e 60 dias não serem dias normais mas dias úteis, o que altera o numero de 90 para cerca de 120 dias, o que constitui um perfeito absurdo.
Isto é especialmente chocante nos processos de atribuição de nacionalidade que, sendo bem instruídos, tem a mesma simplicidade que um vulgar registo de nascimento que qualquer pessoa faz numa conservatória de registo civil.

A situação é muito mais grave no que se refere aos processos de naturalização e, neste plano, aos netos e bisnetos de cidadãos portugueses.
A situação é gravíssima por relação aos netos de portugueses que têm filhos menores, os quais poderiam adquirir a nacionalidade na menoridade, passando a meros candidatos à naturalização de bisnetos se atingirem os 18 anos antes da conclusão dos processos dos pais.

Aí, os prazos, pura e simplesmente não são respeitados, não havendo conhecimento de que até ao momento tenha deferido algum pedido. Se o foi, foi às ocultas e, com quase certeza,
violando o princípio da igualdade, de que todos os cidadãos são titulares.

Se é uma verdade que a eliminação da publicação no Diário da República evita a vergonha, a que assistimos no quotidiano, de continuar a ver publicações de decisões relativas a processos
«com barbas», também é verdade que tal eliminação (que bem poderia ter sido substituída por publicação na Internet) transformou os processos de naturalização em qualquer coisa tendencialmente obscura e por isso suspeita.

Existem outros paradoxos no diploma, que deveriam ser corrigidos a breve prazo.

Refiro-me apenas a dois deles:

a) Nos termos do disposto no nº 1 do citado artº 41º, os prazos da Conservatória dos Registos Centrais contam-se da data da recepção das declarações, mesmo que elas tenham prestadas junto de uma conservatória do registo civil, que é chefiada por um conservador de registo civil, provavelmente mais qualificado que o conservador auxiliar que despacha na Conservatória dos Registos Centrais. Parece-me que esta norma ofende o sentido geral das reformas feitas nos últimos tempos na área do registo civil e do notariado.

b) O conservador pode suscitar todas as dúvidas que lhe apetecer suscitar e promover diligências oficiosas, sem nenhum limite na legalidade e sem notificação das partes, nos termos do disposto no artº 42º do Regulamento.

O comportamento que vem marcando a prática da Conservatória dos Registos Centrais constitui sistemático abuso de direito e importa um profundo desrespeito dos princípios informadores do procedimento administrativo e das boas regras de tratamento dos utentes dos serviços públicos (ver, entre outros, os dispositivos do Capítulo II do Código do Procedimento Administrativo e do Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril).

Com base nesses princípios, estamos a preparar procedimentos judiciais adequados a remediar esta situação, recorrendo à justiça administrativa, por nos parecer que as garantias dos administrados devem prevalecer sobre os prazos limite consignados no Regulamento da Nacionalidade.

Nenhuma justificação há para que um procedimento que pode ser resolvido numa hora demore 120 dias… e estamos, por isso mesmo convencidos de que os tribunais nos darão razão, tanto mais que a mais recente reforma de fundo do Regime Emolumentar dos Registos e do Notariados estabeleceu a regra segundo a qual «a tributação emolumentar constituirá a retribuição dos actos praticados e será calculada com base no custo efectivo do serviço prestado, tendo em consideração a natureza dos actos, a sua complexidade e o valor da sua utilidade económico-social» (Ver preâmbulo do DL nº 322-A/2001, de 22 de Dezembro).

Ora, assim sendo, a questão que agora se levanta pode e deve equacionar-se também sob uma perspectiva de direitos do consumidor.

Um processo de atribuição ou aquisição de nacionalidade tem, por regra, uma tributação emolumentar de 175 €. Se é razoável que ele se conclua numa hora, sendo ainda razoável que se exija a cada funcionário um mínimo de quatro horas de trabalho, evidente se torna que o Estado receberá por cada funcionário que conclua quatro destes processos por dia, um total de 700 €, que redundará no fim de cada mês em 14.000 €, valor que lhe permite alcançar chorudos lucros com este negócio.

Essa é mais uma razão para exigir eficácia e, sobretudo, respeito pelos direitos dos utentes.

Sobre esta matéria já escrevi ao Sr. Primeiro-Ministro e ao Senhor Ministro da Justiça. O gabinete do primeiro enviou aquela resposta de chapa, dizendo que ia mandar analisar a situação. Mas ficou tudo na mesma, apesar de estas posturas desacreditarem completamente o SIMPLEX, que é uma das meninas dos olhos do Engº José Sócrates.

Escrevo-lhe a si… para desabafar, com uma sensação de que esta mensagem não vai mudar nada, porque poderes mais altos protegem este estado de coisas, apostados que estão em ridicularizar o que se vai tornando cada vez mais ridículo, todos os dias.

Mas escrevo-lhe por outra razão que é política.

O Sr. Secretário de Estado assumiu compromissos com os portugueses residentes no estrangeiro e conseguiu influenciar esta reforma que, se não fosse pervertida, teria muitos pontos positivos.

Lembro-me, entre outros, de um discurso seu, em São Paulo no qual prometeu, em nome do Governo, um rol de facilidades e desburocratizações que se transformou numa enormíssima mentira.

Todos os dias me questionam sobre essas suas promessas, porque eu próprio fiz uma conferência nesta cidade, em que aplaudi o sentido das reformas e, implicitamente, o seu discurso.

Vejo-me obrigado agora a desdizer-me e a desdizê-lo, o que, sinceramente lastimo.

O que está a acontecer transformou o seu discurso e o que eu próprio afirmei na minha conferência numa grosseiríssima fraude, em que participei de boa fé, porque acreditei em si e na seriedade e competência do Governo em o meu amigo participa.

Enganamos esta gente toda (os de São Paulo e os que nos leram pela Internet ou ouviram na televisão) quando afirmamos que o Governo iria desburocratizar os processos de aquisição e atribuição de nacionalidade.

Enganamos sobretudo os netos e os bisnetos dos portugueses, a quem criamos enormes esperanças.

Tudo isso foram inaceitáveis, repetidas depois pelo Engº Sócrates naquela encenação do Centro Cultural de Belém.

Saiu pela janela tudo o que entrou pela porta, depois de o Estado ter embolsado milhões de euros sem nenhuma contrapartida para as pessoas a quem criou expectativas.

Quero ainda acreditar que… fomos todos (nós próprios) enganados por uma inacreditável e inaceitável postura da Conservatória dos Registos Centrais e pela incompetência do Ministério da Justiça, mais cioso na criação de factos que alimentem o seu marketing, do que na solução dos problemas concretos.

Fico à espera, para tirar as conclusões finais. Mas não posso deixar de me retratar perante aqueles a quem, de boa fé, prometi o que não se pode cumprir.

A eles, aos milhares de portugueses e luso-descendentes a quem transmiti uma mensagem de esperança nesta reforma, apresento as mais sinceras desculpas.

De si fico apenas à espera que responda às provocações que esta carta, deliberadamente, contém.

Os meus melhores cumprimentos

Miguel Reis

07 outubro 2007

A inviabilização da candidatura de António Vilar

Leio no site da Ordem dos Advogados um comunicado em que se explica como foi inviabilizada a candidatura de António Vilar a Bastonário da Ordem dos Advogados.
Diz em certo passo o seguinte:

«O Sr. Dr. António Vilar não apresentou qualquer lista na qual figurasse como candidato a bastonário.
Alegou, entretanto, que o não fez, porque dois conselhos distritais, o de Lisboa e o do Porto, não autenticaram as assinaturas dos proponentes dessa lista, pelo facto de as mesmas lhes terem sido apresentadas em cópia e não em original.
Este facto corresponde à realidade. Com efeito quer o Conselho Distrital de Lisboa, quer o Conselho Distrital do Porto, procederam como indicado, fundamentando essa recusa em despachos devidamente fundamentados e notificados.
Ambos os conselhos distritais, todavia, se disponibilizaram a autenticar os originais dessas assinaturas, ainda que para tanto fosse necessário efectuar trabalho extraordinário.
Ao longo dos anos a autenticação das assinaturas dos advogados proponentes têm sido feitas nos respectivos originais e não em fotocópias.
Esta a orientação que continua a ser adoptada pelos conselhos distritais, mesmo naqueles em que, por lapso, se não haja feito assim. »
É estranhíssima a última frase da citação, que abre portas para que se pense que houve excepções à regra.
Grave - gravíssimo - é que um órgão com a importância que tem o Conselho Geral da Ordem dos Advogados afirme o seguinte, referindo-se, naturalmente às perspectivas de impugnação destas posturas pelo candidato afastado da corrida:
«O Conselho Geral da Ordem dos Advogados manifesta também o seu firme propósito de garantir a realização do acto eleitoral na data já designada, verberando quaisquer anunciadas tentativas de perturbar este objectivo, as quais redundariam, forçosamente, num desprestígio da Ordem e numa perturbação inaceitável no seu normal funcionamento.»
Será que o recurso a um tribunal, por mais perturbador que seja, é susceptivel de desprestigiar a Ordem dos Advogados? Parece-me bem que não...
O recurso, a merecer provimento, desprestigiará sem os seus actuais dirigentes, que parece que agiram de forma mesmo sensata.
É óbvio e evidentíssimo que o argumento de que sempre foi assim e continuará a ser é, em si mesmo, um disparate.
De um ponto de vista jurídico não encontrei nenhum fundamento que permita sustentar a tese dos conselhos distritais.
A Ordem dos Advogados é uma associação pública, que se rege, para além do respectivo Estatuto, pelas regras que vinculam as entidades administrativas, desde logo pelo disposto no Código do Procedimento Administrativo e no Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de Abril.
Não há quaisquer dúvidas de que estamos perante um procedimento de natureza administrativa, no caso da apresentação de uma candidatura às eleições para a Ordem dos Advogados.
Não havendo, como parece que não há, nenhuma norma expressa exigindo que as propostas de candidatura sejam suportadas por documento original, parece-me que deveriam ter sido aceites as fotocópias, ou mensagens enviadas por fax.
Estas permitiriam até a confirmação da origem, pois que os advogados têm os seus faxes registados na Ordem.
De qualquer modo, o referido Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, é expresso, no seu artº 32º, afirmando o seguinte:
«1. Para a instrução de processos administrativos graciosos é suficiente a simples fotocópia de documento autêntico ou autenticado.
2. Sem prejuízo da obrigatória recepção da fotocópia a que alude o número anterior, quando haja dúvidas fundadas acerca do seu conteúdo ou autenticidade, pode ser exigida a exibição de original ou documento autenticado para conferência, devendo para o efeito ser fixado um prazo razoável não inferior a cinco dias úteis.
3. No caso previsto no número anterior, o funcionário apõe a sua rubrica na fotocópia, declarando a sua conformidade com o original.»
Se é assim para os documentos autênticos ou autenticados nenhuma razão há para que o não seja para os meros documentos particulares.
Anota-se, de outro lado, que a recente reforma do Código de Processo Civil veio eliminar a necessidade de se entregarem em juizo os originais das telecópias, sem prejuizo de quaisquer originais poderem vir a ser solicitados, em caso de dúvida.
Em minha opinião, os conselhos distritais deveriam ter recebido as propostas de candidatura em cópia, procedendo depois, se o entendessem ao pedido dos originais.
Recusarem-nas, pura e simplesmente, é que não faz nenhum sentido, até porque vai contra a corrente de simplificação que vimos defendendo nos últimos anos.
Oxalá que o Dr. António Vilar recorra e que ganhe o recurso.
Ao invés de desprestigiar a Ordem, uma tal vitória só a prestigiaria, porque a Ordem, malgré tout, não pode confundir-se com os seus actuais dirigentes.

03 outubro 2007

Uma pouca vergonha...

Tinha a ideia de que as qualidades de gestor judicial e de deputado à Assembleia da República eram, entre outras, incompatíveis com a advocacia.
Esta semana apareceu-me uma notificação relativa a um processo em que o advogado (de uma entidade pública) é um ilustre deputado da República.
No mesmo dia apareceu-me outra, de uma insolvência, em que o gestor judicial é um conhecido advogado.
Fui ver o Estatuto da Ordem dos Advogados e lá está no seu artº 77:

1 - São, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções e actividades:
a) Titular ou membro de órgão de soberania, os representantes da República para as regiões autónomas, os membros de governo regional das regiões autónomas, os presidentes de câmara municipal e, bem assim, os respectivos adjuntos, assessores, secretários, funcionários, agentes ou outros contratados dos respectivos gabinetes ou serviços;
b) Membro do Tribunal Constitucional e os respectivos funcionários, agentes ou contratados;
c) Membro do Tribunal de Contas e os respectivos funcionários, agentes ou contratados;
d) Provedor de Justiça e os funcionários, agentes ou contratados do respectivo serviço;
e) Magistrado, ainda que não integrado em órgão ou função jurisdicional;
f) Governador Civil, Vice-Governador Civil e os funcionários, agentes ou contratados do respectivo serviço;
g) Assessor, administrador, funcionário, agente ou contratado de qualquer tribunal;
h) Notário ou conservador de registos e os funcionários, agentes ou contratados do respectivo serviço;
i) Gestor público;
j) Funcionário, agente ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local;
l) Membro de órgão de administração, executivo ou director com poderes de representação orgânica das entidades indicadas na alínea anterior;
m) Membro das Forças Armadas ou militarizadas;
n) Revisor oficial de contas ou técnico oficial de contas e os funcionários, agentes ou contratados do respectivo serviço;
o) Gestor judicial ou liquidatário judicial ou pessoa que exerça idênticas funções;
p) Mediador mobiliário ou imobiliário, leiloeiro e os funcionários, agentes ou contratados do respectivo serviço;
q) Quaisquer outros cargos, funções e actividades que por lei sejam consideradas incompatíveis com o exercício da advocacia.
2 - As incompatibilidades verificam-se qualquer que seja o título, designação, natureza e espécie de provimento ou contratação, o modo de remuneração e, em termos gerais, qualquer que seja o regime jurídico do respectivo cargo, função ou actividade, com excepção das seguintes situações:
a) Dos membros da Assembleia da República, bem como dos respectivos adjuntos, assessores, secretários, funcionários, agentes ou outros contratados dos respectivos gabinetes ou serviços;
b) Dos que estejam aposentados, reformados, inactivos, com licença ilimitada ou na reserva; c) Dos docentes;
d) Dos que estejam contratados em regime de prestação de serviços.

Logo se vê no nº 2º que saí pela janela o que entrou pela porta... Há uma excepção para os deputados, que é escandalosa, transformando o número 1 al. a) numa declaração fraudulenta.
Mas, depois, há o artº 81º que estabelece que «as incompatibilidades e impedimentos criados pelo presente Estatuto não prejudicam os direitos legalmente adquiridos ao abrigo de legislação anterior».
Será que estas excepções não violam o princípio da igualdade?

A estranha demissão de Gonçalo Amaral

Leio em «O Primeiro de Janeiro»:

«O director nacional da Polícia Judiciária, Alípio Ribeiro, anunciou ontem que o responsável da PJ pela investigação do caso Madeleine McCann, Gonçalo Amaral, “cessou a comissão de serviço” como coordenador do Departamento de Investigação Criminal de Portimão.
Alípio Ribeiro anunciou a saída de Gonçalo Amaral do cargo de coordenador do Departamento de Investigação Criminal de Portimão. “Foi uma decisão tomada pelo director nacional”, acrescentou, à margem da conferência internacional sobre “Guerras, Mulheres e Direitos”, em Lisboa.
O coordenador da investigação do caso da menina inglesa desaparecida no Algarve acusou, em declarações publicadas ontem pelo Diário de Notícias, a Polícia inglesa de investigar “unicamente” pistas e informações “trabalhadas” pelos pais de Madeleine McCann.
“A Polícia britânica tem estado unicamente a trabalhar sobre aquilo que o casal McCann pretende e lhe convém”, disse Gonçalo Amaral, quando comentava a notícia publicada segunda-feira em vários jornais ingleses dando conta de um e-mail anónimo enviado para o site oficial do príncipe Carlos que acusa uma ex-empregada do Ocean Club, empreendimento de onde desapareceu a criança de quatro anos, de ter raptado a menina por vingança. Gonçalo Amaral disse ao DN que tal informação não “tem qualquer credibilidade para a Polícia portuguesa”, estando “completamente posta de parte”.
Acrescentou que os seus colegas ingleses “têm vindo a investigar dicas e informações criadas e trabalhadas pelos McCann, esquecendo-se que o casal é suspeito da morte da sua filha Madeleine”.
Para o até agora responsável pelo Departamento de Investigação Criminal de Portimão da PJ, a história do rapto por vingança não passa de “mais um facto trabalhado pelos McCann”. Em reacção aos comentários de Gonçalo Amaral, o ministro da Justiça, Alberto Costa, reafirmou ontem que as relações entre a PJ e a Polícia britânica no caso Madeleine são de “cooperação profícua”.
“É preciso centrarmo-nos no trabalho e não no comentário”, afirmou Alberto Costa, que não se quis alongar em declarações sobre a críticas feitas pelo até agora coordenador do caso e responsável pelo Departamento de Investigação Criminal de Portimão, Gonçalo Amaral. Por sua vez, a Polícia britânica reiterou que continua a “apoiar a Polícia portuguesa” no caso do desaparecimento de Madeleine McCann, recusando comentar as críticas feitas por Gonçalo Amaral.»
A pergunta que esta notícia suscita é singela: será que Gonçalo Amaral foi demitido por pressão das autoridades britânicas?
É muito importante que isso seja esclarecido o mais rapidamente possível. Mais do que um caso judicial o caso Maddie transformou-se num caso mediático, com a manipulação levada às últimas consequências.
Os ingleses têm investido fortunas nessa transformação, por razões ainda inexplicadas. E as autoridades portuguesas têm gerido muito mal o processo comunicacional, o que é lastimável.
Pode ser que ainda lhes desabe o edifício em cima...
Conheci Gonçalo Amaral há uns 20 anos no quadro de um processo muito complexo e tenho por ele a consideração que tenho por poucos polícias.
É uma pessoa de fino trato, de uma inteligência e de uma intuição acima da média classe e de um respeito pelos direitos dos diversos intervenientes processuais como é raro encontrar-se.
Vamos ver o que vem a seguir.

01 outubro 2007

As novas tecnologias, o direito e a mudança de paradigma das profissões jurídicas

Assisti, há mais de 25 anos, na Faculdade de Direito de Coimbra, a uma conferência sobre a problemática da sobrevivência do direito na sociedade tecnológica.
Naquele tempo, de guerra fria e de fitas perfuradas, aquilo a que assistimos hoje não passava de pura ficção. Mas algumas das ideias expostas continuam a ser de plena actualidade.
A sociedade tecnológica importou, tal como então já se previa, uma profunda alteração no que se refere à formação do direito legal.
Vivemos hoje inundados de documentos e a simplicidade a que conduziam as sínteses passadas a livro foi subsituída por um complexo sistema de fontes, onde, cada vez mais, o importante da ciência está na qualidade da pesquisa.
Mas, de outro lado, no plano da realização do direito, que é cronologicamente posterior à formação do direito, por via dos processos legislativos, assistimos a uma onda de simplificação, como se o legislador tentasse oferecer à sociedade uma espécie de bónus compensatório das dificuldades criadas durante décadas no plano do processo legislativo.
Também, então, já se previa isso. Como se previa que as profissões jurídicas haveriam de sofrer rudes golpes, maxime pela completa anulação de algumas áreas do seu trabalho tradicional.
A ficção está a transformar-se, muito rapidamente, em realidade, sendo hoje já muito visíveis e identificáveis as tendências do que nos espera nos próximos anos.
As «gavetinhas» do direito e as «convergências»
O direito, tal como se ensinava há 30 anos, repartia-se em gavetinhas de especialidade, preenchidas pelos diversos ramos em que a doutrina os foi dividindo, por via das autonomias científicas que cada ramo foi assumindo.
Depois dos movimentos de codificação modernos, que têm os seus pontos altos com os códigos civis de Napoleão (1804) e o código civil alemão (1900) vivemos sob a égide de um racionalismo valorizador das profissões jurídicas.
As vantagens tradicionalmente associadas à codificação são a de ela facilitar um melhor conhecimento do direito aplicável, a de evitar a incompatibilidade entre as fontes , por via da valorização de princípios gerais informadores do sistema e a de oferecer ao intérprete um mapa mais racional e perfeito para a aplicação do direito.
Entre as desvantagens sempre se apontaram as da maior rigidez, por relação ao diktat e a da desactualização por relação à evolução da sociedade.
Entre nós, CASTANHEIRA NEVES (Questão de Facto, Questão de Direito, 1967) foi um dos mais lídimos defensores do interpretativismo, ao considerar que, partindo dos códigos, «o direito não é elemento, mas síntese, não é premissa de validade, mas validade cumprida (...), não é prius, mas posterius, não é dado, mas solução, não está no princípio, mas no fim (...)». E ainda que «não é "o direito" que se distingue de "o facto", pois o direito é a síntese normativo-material em que o "facto" é também elemento, aquela síntese que justamente a distinção problemática criticamente prepara e fundamenta..»
Partindo da crítica cáustica ao positivismo, ao jusnaturalismo e às várias teorias silogísticas, CASTANHEIRA NEVES valoriza, de forma muito especial o recurso à hermenêutica no quadro do sistema jurídico e o constante apelos aos princípios normativos, como instrumento essencial para um funcionamento racionalista do mesmo.
Da sua doutrina releva a valorização do direito mas também a valorização dos juristas, como intérpretes essenciais da mundivivência que o justifica, que o projecta e em que ele se realiza.
Em CASTANHEIRA NEVES as «gavetinhas» funcionavam, mas era como se entre elas houvesse ligações de interacção permanente, suscitando todos os dias novos problemas que o intérprete teria que resolver, de uma forma dinânima, com o constante apelo aos princípios normativos e à consciência ético-axiológica.
O grande Mestre tinha um discurso pesado e difícil para os nossos 18 anos, mas estou em crer que influenciou, de forma determinante, para o bem o para o mal, todas as gerações que passaram pelas suas aulas de Introdução ao Estudo do Direito.
A propósito do tema da sobrevivência do direito na sociedade tecnológica - que se adivinhava mas que ninguém sonhava que chegasse tão depressa - lembro-me de o ouvir aplaudir vantagens mas, sobretudo, de chamar a atenção para os riscos da desumanização e da eliminação dos intérpretes.
É que o direito - e a segurança jurídica para a qual uma lógica jusnormativa dinâmica apela, em última instância - é dificilmente configurável com processos de automação (e ainda menos processos de automatização) como os que as novas tecnologias permitem.
Lembro-me de, nessa época, termos feito algumas incursões no direito soviético, seguindo os ensinamentos de alguns autores ortodoxos que apontavam precisamente em sentido contrário: o direito fixava-se numa realização prévia à sua aplicação, cabendo nessa realização prévia a própria interpretação, que tinha que ser unívoca, implacavelmente precisa, automatizável antes do próprio intérprete que, pela natureza das coisas, não existia como tal.
E justificava-se essa perfeição, precisamente, pela necessidade de assegurar a classe operária a segurança jurídica indispensável à luta permanente pela construção do socialismo, segurança essa impossivel se fosse dado a alguém olhar a mesma norma por diversos prismas e tomando em consideração diversos interesses, que não o interesse de tal construção.
A aplicação do direito não carecia de um intéprete mas de um bom funcionamento dos escritórios controlados pelo partido ou seja da burocracia dirigida pela nomenklatura, a quem incumbia fazer valer as normas e operar a sua convergência visando a construção socialista.
Os juristas - como os encaramos na Europa - quase que desapareceram, absorvidos pela nomenklatura. Muitos foram debater direito para o Gulag...
Naqueles tempos de guerra fria e de fitas perfuradas, que, milagrosamente, davam respostas objectivas e inequívocas às questões que lhe eram colocadas logo constatamos que um tal modelo poderia antecipar, de forma eficaz, a aplicação das novas tecnologias ao direito, se a IBM, que colaborou com os nazis, tivesse cedido tecnologia aos soviéticos.
Era bom que o tivesse feito porque teríamos hoje, seguramente, mais um referencial do que não queremos.
A burocratização da Europa
A Europa evoluiu dos 6 até aos 27 com uma dualidade entre um sistema de raiz romano-germânica, no continente, e outro anglo-saxónico, nas ilhas britânicas e na Irlanda.
O problema que hoje marca, de uma forma algo trágica, o direito europeu não está nesse facto mas num peso brutal da burocracia resultante de uma nova nomenklatura que vem gerando um autêntico polvo, perante os problemas que as realidades da integração suscitam.
O direito legal da União é hoje muito mais uma criação dessa multidão de funcionários e de comissões (que não têm nenhuma raiz democrática) do que do poder político dos estados, cujos dirigentes não têm, muitas vezes, tempo para aquecer os lugares e muito menos para se aperceberem da complexa problemática suscitada pelo regulamentarismo comunitário.
É certo que o princípio da subsidiaridade deixa uma razoável margem aos estados. Mas não é menos certo que, para além dos regulamentos, que são de aplicação directa, as directivas contém, por regra, uma escassissima margem de manobra, visando uma harmonização que, em muitos casos e situações, é inexplicada e inexplicável.
Quando não há outros argumentos, os legisladores da cada país já hoje se refugiam no argumento vazio de que a justificação de determinada medida se encontra nas imposições comunitárias, como se nisso estivesse um fatalismo incontornável.
Se é assim no plano do político, bem se compreende que mais o seja no plano do jurídico, pois que é no primeiro que, por regra, se encontra o lugar próprio do debate de ideias. Daí que a normalização decorrente do funcionamento do próprio sistema político da União tenda a conformar uma normalização concordante - e provavelmente mais forte e mais rigorosa - no plano do jurídico.
Nesta mesma linha se compreende que o sistema de acesso e o próprio sistema de funcionamento dos tribunais da União Europeia seja extremamente hermético e não prometa abrir-se sequer no quadro do Tratado Reformador, caindo por terra os sonhos dos que pensavam na hipótese de o defunto projecto de tratado constitucional poder abrir porta a juizos
de constitucionalidade sobre os normativos europeus.
É evidente que uma coesão acelerada como a que se projectou na Europa tem custos especiais. E estes são alguns deles.
Uma outra vertente, todavia conforme, pela qual se pode analisar o fenómeno é a do mercado.
Até agora tem-se falado apenas das exigências do mercado, tudo se justificando a benefício das empresas e de um projecto de desenvolvimento sustentável que não pode alhear-se das realidades - e muito menos das necessidades - da globalização.
O argumento tem servido para abusar dos estereótipos (mais facilmente automatizáveis, nomeadamente no plano da tradução) e para tendencializar a resposta jurídica no estilo de uma FAQ, substituindo-se os juristas com manifesta vantagem.
Do programa do Governo Sócrates recortamos estes pequenos extractos:
«Os cidadãos e as empresas não podem ser onerados com imposições burocráticas que nada acrescentam à qualidade dos serviços (...). No interesse dos cidadãos e das empresas serão simplificados os controlos de natureza administrativa, eliminando-se actos e práticas registrais e notariais que não importem um valor acescentado e dificultem a vida do cidadão e da empresa».
É obvio que este tipo de discurso merece o aplauso de todos. E as práticas mereceram até a classificação do Governo português como um dos campeões ex-aequo da implementação do e_Government.
O drama do SIMPLEX
O sistema SIMPLEX poderia ser uma invenção extraordinária, constituindo uma ponte entre o direito de genes romano-germânicos que temos e que estudamos e a sociedade da informação, do conhecimento e da globalização. E isso porque nos parece absolutamente compatível a introdução das novas tecnologias e a manutenção dos níveis de rigor jurídico e de liberdade que devem, segundo a lógica tradicional, informar os actos e os negócios jurídicos.
Só que os fautores do sistema o conceberam de modo diverso, sem dúvida mais coerente com a lógica burocratizadora que os grandes interesses vêm impondo à construção jurídica a nivel mundial.
Só para dar alguns exemplos:
a) Tecnicamente, era perfeitamente possível constituir sociedades na base de contratos sociais que traduzissem a vontade efectiva das partes, em vez da (quase) imposição da adesão a meia dúzia de estereótipos contratuais pré-elaborados. Quando criou um sistema que favorece a adopção das minutas pré-fabricadas, o legislador sabia perfeitamente que criava um monopólio do fabrico das minutas e da própria interpretação dos contratos que, tendo sido feitos por ele sem consulta de ninguém, só por ele podem ser rigorosamente interpretados.
b) No domínio das marcas, usando o seu poder, lançou o Governo mão da criação de marcas que regista em nome da administração e que posteriormente vende, aproveitando-se de uma facilidade que não está acessivel a mais ninguém.
c) No domínio do direito da imigração, o Governo criou estruturas próprias que usam mecanismos do sistema e se apropriam da própria consultoria, em condições de manifesto abuso da concorrência por relação aos operadores privados. O mesmo é válido no plano do direito da nacionalidade, área em que o tesouro investe milhões para ocupar um mercado tradicionalmente ocupado por operadores privados.
d) Depois da administrativização do processo de divórcio, que já tem alguns anos, a recente reforma do Código do Registo Civil veio conformar a lei com a realidade, legalizando a procuradoria ilícita que até agora vinha sendo desenvolvida por conservadores e funcionários e afirmando expressamente que, a partir de agora, podem eles elaborar as peças necessárias ao processo de divórcio.
e) Na recente reforma do Código Civil e do Código do Registo Civil veio estabelecer-se um «procedimento simplificado» de habilitação e partilha, a processar imediatamente após a declaração do óbito ou do divórcio, procedimentos esses que, apesar da complexidade das matérias, podem ser feitos pelos funcionários, não carecendo sequer de intervenção de um conservador licenciado em direito.
f) Anuncia-se um «esquema» em que se permitirá aos cidadãos apresentar queixas on-line às forças de segurança, sem que se anuncie previamente uma campanha de esclarecimento sobre o sentido e o alcance do direito penal e processual penal ou sem que se introduzam programas de informação sobre estas matérias nas escolas.
g) Anuncia-se um «esquema» de agilização do processo de compra e venda de imóveis, por via do processamento perante um balcão único.
h) Anuncia-se um «esquema» de registo informatizado da propriedade industrial, relativo às patentes, modelos de utilidade e desenhos.
O programa SIMPLEX para o ano de 2007 contém um enunciado de medidas que, lido de forma desatenta, é simplesmente aliciante. Só que, se pensarmos na aplicação de algumas dessas medidas por via de uma solução informática, sem intermediação humana corremos o sério risco de as transformar em solução desumanas e atentórias dos direitos dos cidadãos consumidores, que, na circunstância, têm o Estado como fornecedor.
Nada disto é ingénuo
Tenho para mim que nada disto é ingénuo e que, bem pelo contrário, é coerente e bem elaborado, em conformidade com o «novo espírito» do sistema.
Já assistimos a coisas parecidas na agricultura e no comércio, com a única diferença de que o Estado não «atacou» o mercado de forma tão brutal como aquela que está a adoptar para os serviços. Mas o certo é que, tanto num sector como no outro, se incumbiu de criar mecanismos que afastassem os pequenos do mercado para dar lugar aos grandes, ainda que isso tenha custado milhões aos contribuintes de Portugal e da União.
É evidente que o chavão da «simplificação» é sedutor. Mas é ainda mais evidente que ele importa um paradoxo, que consiste em liquidar uma série de serviços que estavam, essencialmente, na mão de operadores privados, para os substituir por serviços públicos, em que o Estado investe milhões com muito pouca transparência, sem que daí venha uma especial vantagem às pessoas e às empresas.
O SIMPLEX poderia ser uma coisa boa se fosse formatado como uma ferramenta de modernização das práticas dos operadores tradicionais e se, no que se refere às questões jurídicas, não afirmasse um hermetismo tal que redunda na indiscutibilidade de muitas questões.
Claro que haverá quem argumente que isso não é verdade porque abertas ficam quase todas as vias tradicionais. Só que não é assim, porque o Estado reserva para si a chave da celeridade e a chave do preço, desvalorizando, de forma significativa, os preços dos serviços que se realizem por via digital e que só ele pode prestar.
Os notários foram as primeiras vítimas, com um mercado perdido em mais de 50% e com novas reduções da sua área de intervenção em perspectiva.
Os advogados, a quem ofereceram o prato de lentilhas dos reconhecimentos, calaram-se e começaram a levar agora a sua tosa em diversas áreas da sua intervenção tradicional.
Primeiro foi a administrativização dos divórcios e a desvalorização da sua importância jurídica. Agora é a machadada final na advocacia de família com a legalização dos cambões que aquela reforma gerou.
Depois foi a destruição de uma boa parte do direito societário, tal como o concebiamos, por via da facilitação da constituição estereotipada das sociedades, em substituição das sociedades personalizadas.
Mais recentemente foi a desvalorização do direito sucessório, com a criação de expedientes práticos mas pouco seguros, que aconselham o não recurso a um profissional forense, ainda que em termos de aconselhamento, pois que todo o poder é conferido ao funcionário, provavelmente analfabeto jurídico, que vai realizar o acto.
As anunciadas «facilidades» no âmbito das marcas e patentes liquidarão, também, uma boa parte desse mercado, não sendo melhores as perspectivas no que se refere ao direito fiscal, cuja automação também se anuncia.
Será isto bom para os cidadãos?
Aparentemente tudo isto é muito bom para os cidadãos e para as empresas e, por isso mesmo, merecerá o aplauso de todos.
Muitos dos que me leem considerarão que este é o discurso de um elemento de uma classe privilegiada que está a perder terreno e, por isso, um discurso que não passa de uma lamúria.
Puro engano.
Penso que a indiscutibilidade a que este novo modelo burocrático nos conduz e para a qual nos alicia é má para os cidadãos e para as empresas. Mas tenho para mim que é inevitável
Esta é, aliás, apenas um pequena ponta do iceberg, existindo outras áreas em que, de forma sofisticada, se vem afirmando a mesma lógica.
As democracias modernas tiveram o mérito de levar aos parlamentos cáfilas de analfabetos ou políticos pouco informados, que mostram uma grandes insensiblidade e uma enorme ignorância sobre o que falam.
O poder reside exclusivamente nas direcções partidárias e estas também são vulnerveis à globalização e aos pequenos grupos fechados que definem os destinos do Mundo de hoje.
Está na moda em toda a Europa a afirmação da necessidade de «simplificação», mesmo que isso custe o sepultar de séculos de experiência e de teorização.
Está na moda em toda a Europa a desvalorização do sistema de justiça tradicional e a implementação de medidas que, a pretexto de aumentar a segurança jurídica, efectivamente a restringem.
O mais recente exemplo que temos disso mesmo está na recente reforma do modelo de recursos em processo civil, assente nesse princípio simplificador e no apelo à quase indiscutibilidade do que é decidido por um juiz de primeira instância.
Argumenta-se que a globalização e a internacionalização das economias não nos permitem perder tanto tempo para parir decisões judiciais definitivas e com trânsito em julgado e que, por isso, é preciso descongestionar os tribunais.
Trata-se, efectivamente, de uma saída perversa, pois que se as decisões judiciais são demoradas, em razão do número de processos, o caminho correcto e normal seria o do aumento dos número de juizes.
Mas não: o que afinal se pretende é a própria descrebilização do sistema judiciário tradicional e, cumulativamente, mesmo contra o senso comum, a redução do mercado dos advogados que patrocinavam os recursos que vão acabar.
Outros negócios
Ao mesmo tempo que reduz as possibilidades de recurso em processo civil, o Governo desfaz-se em apelos ao recurso a «meios alternativos», nomeadamente à arbitragem e investe milhões na promoção desse negócio alheio ao Estado.
A arbitragem não precisa da publicidade do Estado, não se compreendendo, à primeira vista, porque razão ele a faz e ainda menos se compreendendo porque razão molda o processo civil de sorte a proteger o respectivo mercado.
A atitude não deixa, porém, se ser coerente.
Em 1992 havia 925.000 advogados nos Estados Unidos e cerca de 500.000 na Europa, facturando o primeiro grupo cerca de 95 mil milhões de dólares e o segundo cerca de 52 mil milhões de dólares, segundo um relatório da OMC. Segundo o Eurostat, o volume dos serviços jurídicos, subiu para mais de 404 mil milhões de euros na Europa a 27.
A Directiva dos Serviços (2006/123/CE), mantendo embora o essencial do edifício de cada um dos estados, deixou um caminho claro e inequívoco para a reformatação do mercado e para a criação de um novo paradigma do sistema jurídico e da prestação de serviços jurídicos, de que encontramos já sinais expressivos com o Legal Service Bill no Reino Unido e com a admissão da constituição de empresas multidisciplinares em Espanha.
Toda esta descaracterização das áreas jurídicas no sentido da normalização e da redução das margens interpretativas (a que não pode deixar de associar-se o emprobrecimento trazido à formação dos juristas pelo processo de Bolonha) não passa, a meu ver, de um jogo adequado à criação de condições para a partilha do mercado pelas grandes companhias internacionais.
São conhecidas, a propósito, as discussões e as exigências que se vêm fazendo nos fori da Organização Mundial do Comércio. A polémica já vem do Uruguai Round (ver exemplo) e, apesar das pressões das organizações de advogados, está a ser resolvida, discretamente no sentido contrário ao dos seus interesses.
O mercado dos serviços jurídicos só é interessante na perspectiva das grandes companhias que o disputarão a nivel mundial, se se avançar para uma progressiva normalização e para uma progressiva desjurisdicionalização nos grandes espaços e é isso que está a acontecer na Europa.
É neste quadro que é preciso compreender as mudanças e, especialmente, a sua faceta política.
Um grande negócio a privatizar
Dentro de alguns anos nenhum governo da Europa terá acções de companhias para privatizar. Mas, com algum jeito, com a apropriação que vem fazendo e a reformatação que vem realizando nalguns serviços públicos que já existiam e a que agora foi dada uma máscara mais próxima das entidades privadas, o Governo avança para a criação de estruturas privatizáveis por elevado valor.
Afinal, o Estado tem nas mãos todos os ingredientes para dar certo, a começar pela sua própria incapacidade para gerir, que constitui o melhor argumento para as privatizações.
Do outro lado tem a gula das grandes companhias que se perfilarão para a partilha do mercado e um exército industrial de reserva que permitirá ter operários qualificados a baixo preço.
O escândalo do estágio dos advogados
No seu estertor, a Ordem dos Advogados - que nenhum sentido terá no quadro do novo modelo que se anuncia - mantém um sistema de estágio obsoleto e cria dificuldades à inserção dos jovens advogados na vida activa.
O estágio da advocacia - que ninguém da minha geração fez nos termos agora vigentes - passará a durar 30 meses, seis meses dos quais com aulas teóricas cujas matérias são a repetição do que os licenciados aprenderam nas faculdades de direito, porém em mau vernáculo, porque não são proferidas por académicos.
Alega-se que é importante a «formação teórico-prática» e que tais aulas se destinam a fazer um interface entre a Universidade e a advocacia, ensinando-se aos formandos algumas técnicas que não tiveram a oportunidade de aprender durante os seus estudos.
Pela experiência que tenho, não vejo nenhuma utilidade em tais lições e casos há até em que fui obrigado a contradizê-las, porque delas houveram os meus estagiários informações técnicas que reputo erradas.
Essa parte teórica do estágio mais não serve do que de cabide de emprego para advogados que, não tendo trabalho profissional em excesso, conseguem arranjar tempo para dar aulas, o que, desde logo, é um mau presságio para os formandos.
Muito grave é que ninguém se preocupe com a efectiva inserção dos jovens licenciados em escritórios de advogados, permitindo-lhes um trabalho efectivo (ou pelo menos a investigação) em áreas novas em que é possível criar valor e que se arrastem essas criaturas, durante dois anos e meio, pelas ruas da amargura que, se não tiverem azar, lhes permitirão ter uma cédula profissional que não vale rigorosamente nada.
Um quadro desolador num ambiente de manifesto estrangulamento da concorrência
Para os jovens licenciados em direito as perspectivas da advocacia traçam-se num quadro absolutamente desolador, que começa precisamente com esse longo período de estágio e com a incerteza dos resultados em exames, que, por mais sabedores que sejam, são arriscados, porque realizados por quem não tem competências académicas para tal.
Como pode um simples licenciado avaliar outro, que até, na generalidade dos casos, tem sobre as matérias uma formação doutrinária mais moderna e mais evoluida?
Como pode, de outro lado, aceitar-se que os membros de uma corporação profissional bloqueiem o acesso dos seus candidatos a concorrentes à profissão?
Nesta matéria estamos, obviamente, no domínio do paradoxo... Mas não apenas nessa...
O tal jovem que acaba o estágio e que pode ser um excelente profissional, embora jovem, não tem a mínima hipótese de oferecer os seus serviços no mercado, porque isso lhe é proibido por uma lei retrógada que protege o compadrio na contratação de serviços jurídicos.
E absolutamente intolerável que esse jovem não possa dirigir uma carta a anunciar que lhe foi atribuida uma cédula profissional e a oferecer os seus serviços ao banco X ou à Empresa Y.