15 outubro 2006

15 de Outubro de 2006


O que o governo tem afirmado nos últimos tempos em matéria de justiça assume a natureza daquela propaganda que, por ser enganosa, se voltará inevitavelmente contra ele.
Talvez porque o próprio governo não acredita nas suas soluções, adoptou a medida de aplicar as reformas com carácter experimental em comarcas muito restritas.
Do mal o menos. Mas nem por isso deixa de ser chocante aquilo a que assistimos e que se limitará a arrastar e a agravar os problemas.
Tenho para mim, como resultado da minha própria experiência, que o mal da justiça não está nos códigos nem no mapa judiciário e, por isso mesmo, o melhor seria não lhes mexer por uns tempos.
Cada alteração que se faz na legislação custa milhões de horas de trabalho aos operadores judiciários e, em vez de melhorar o funcionamento do sistema piora-o, como ainda recentemente ficou provado com a reforma da acção executiva. Já passaram por ela quatro governos e ainda não a conseguirm implementar em termos minimamente satisfatórios. Estamos hoje muito pior do que estávamos antes do governo de Guterres.
As medidas simplórias introduzidas pelo DL 108/2006, de 8 de Julho, não só não vão resolver nada como, pelo contrário, ameaçam arruinar o pouco que resta do prestígio da justiça na jurisdição civil, intimamente ligado à vinculação dos juízes às leis e aos ritos processuais, cujo abandalhamento agora se propõe por via da substituição daquelas por uma administração mais ou menos discricionária dos magistrados.
Não vou agora comentar exaustivamente o diploma, limitando-me a observar apenas uma das suas aberrações.
Imaginemos que uma companhia de telecomunicações distribui numa comarca cinquenta acções contra cinquenta pessoas diferentes, com duas testemunhas profissionais, como é costume.
O juiz pode, por sua iniciativa ou por requerimento das partes, ouvir essas testemunhas para todos os processos, obrigando os cinquenta advogados das partes a esperar a sua vez, inviabilizando ou dificultando a possibilidade de contradita e, pior do que isso, sacrificando a continuidade da audiência.
E para julgamentos que poderiam fazer-se com uma deslocação ao tribunal, vamos ter, pelo menos, duas deslocações, com as inerentes perdas de tempo e um substancial agravamento dos custos.
Para além das questões praticas evidentes, há aqui outros valores que têm que ser considerados. Um é o da continuidade da audiência. Outro tem a ver com a natureza civilística do processo, que agora é ameaçada com a figura da agregação, que mais não é que uma colectivização (e uma inevitável confusão) dos processos que tenham entre si alguma conexão, que pode ser apenas a de terem num pólo a mesma parte com as mesmas testemunhas.
Um julgamento importa para si mesmo um processo psicológico de ponderação da relação entre as partes, que é seriamente prejudicado com a massificação da intervenção processual de uma delas, susceptível de distorcer o juízo.
O chamado regime experimental, para além de não resolver nada, importa consigo algumas terríveis maldades.
Uma consiste em agravar na opinião pública a ideia de que todos os males da justiça são uma criação dos juízes, partindo-se como se parte agora da ideia feita de que lhes são retiradas todas as peias, passando eles a poder passar por cima de toda a folha, com o poder de regular o andamento dos processos por sua alta recreação e a obrigação de «decidir na hora». Depois da «empresa na hora», pretende-se agora a «justiça na hora» com as mesmas marcas da imperfeição e do improviso. É o movimento naif a chegar à justiça, sem que ninguém lhe ponha cobro.
A ideia da «empresa na hora» é uma excelente ideia, que se matou à nascença com a imposição de estatutos forçados, ou seja de contratos em que não tem nenhuma expressão a vontade das partes. Nesse sentido elas são uma fraude institucionalizada, na medida em que os terceiros que com elas negoceia são levados a crer que negociaram com uma entidade colectiva cujos estatutos emanam da vontade dos sócios, quando isso é manifestamente falso e a falsidade se demonstra com as próprias leis.
Não se sabe ainda ao que levará a «justiça na hora», desde logo pelo paradoxo que o conceito importa. Uma decisão judicial tem que ser ponderada e, por isso mesmo, acreditamos que poucos juízes arrisquem a ditar imediatamente as suas decisões, sobretudo nos processos em que seja admissível o recurso, o que transformará tal preceito em letra morta nesses casos.
O que é evidente é que a simples existência da norma nos leva a outra outra maldade, esta de raiz mais populista. Se o juiz pode decidir logo, porque é que não decide? - perguntará o povo. E com isso teremos os políticos, que são os grandes responsáveis da tragicomédia que vivemos, a responsabilizar mais uma vez os juízes por todos os males da falência a que chegou o sistema.
Uma outra consequência negativa resulta evidente da reforma que está na pauta, desta feita por via da redução das possibilidades de recurso, que não tem outro sentido imediato que não seja proteger as asneiras cometidas no quadro da «justiça na hora». Se à partida de sabe, porque é do senso comum, que o abandalhamento processual que se propõe levará a mais asneiras do que até agora era possível e que as asneiras na justiça se corrigem por via dos recursos, evidente se torna que a protecção do modelo passa pela redução das possibilidades de recurso, na velha lógica do «come e cala».
Até aí, tudo bem… O pior gera-se noutro plano, o da corrupção, tão bem retratada naquele famoso ícone do juiz de duas caras, do tribunal de Monsaraz.
A história dos recursos está intimamente ligada a uma ideia de anulação do favorecimento e da corrupção. E se até agora não temos em Portugal senão casos muito esparsos de suspeita, sendo os juízes geralmente considerados pessoas íntegras, não podemos deixar de considerar que «a ocasião faz o ladrão» e que todos os homens, incluindo os juízes, são feitos da mesma massa, pelo que seria de todo aconselhável não mexer no regime dos recursos.
Mas vamos a coisas concretas e objectivas.
Ê claro para todos nós que o maior problema da justiça é um problema de tempo. Os processos, sejam de que natureza forem, são extremamente morosos.
Poucos cidadãos saberão que é perfeitamente possível calcular, de forma objectiva, o tempo de atraso de determinado processo. Como poucos terão a ideia de que é perfeitamente possível estabelecer uma data para a conclusão de um processo, em qualquer das instâncias, tomando em consideração as regras do que deveria ser um curso normal, ou seja as regras processuais relativas a prazos.
Se temos a noção desta realidade e sabemos, com certeza demonstrada, que o atraso dos processos não se deve às partes, porque estas cumprem rigorosamente os prazos, torna-se evidente que não é preciso inventar nada para resolver o essencial da crise: basta adoptar medidas que obriguem, efectivamente, os juízes e os funcionários a cumprir os prazos estabelecidos pelas leis, impondo-lhes sanções idênticas às que são impostas às partes.
O problema está em que há um completo descontrole no funcionamento dos tribunais e que a falência em que entrou o sistema não permite, sem que se adoptem medidas administrativas de fundo, resolver, a um tempo, duas questões essenciais: a recuperação dos processos existentes e o não atraso dos processos novos.
O incumprimento dos prazos por parte dos magistrados e dos funcionários é justificado, por regra, com o excesso de trabalho e com o excesso de pendências. E as medidas propostas para resolver a crise partem dessa alegação, mas não ousam sequer tocar no problema dos prazos, sendo certo que toda a gente foge dele como o diabo da cruz.
Por isso, o que se propõe é, de um lado, a «simplificação» e, do outro, a intervenção no mercado pelas vias do racionamento e do aumento de preços que nada garantem e permitirão sempre justificar a incompetência com razões de mercado.
Um serviço de Justiça (com J) só se justifica se for um serviço de qualidade. Por isso não pode ser «na hora», nem «de pé descalço», como essa que se pretende realizar nos julgados de paz e nos modelos alternativos, que poderiam ser óptimos modelos e se estão a transformar em lugares de «meia bola e força».
Partindo do enunciado pressuposto de que o estado a que a justiça chegou decorre, essencialmente, do incumprimento dos prazos processuais por parte dos tribunais, resulta num axioma a afirmação já feita de que o problema só se resolve com a criação de condições adequadas ao cumprimento da exigência de respeito pelos prazos.
Esse é, essencialmente, um problema de gestão de recursos humanos, que tem que ser resolvido na base das mesmas regras que se aplicam nas empresas.
De nada nos vale citar estatísticas de outros países (quase sempre velhas de anos) para dizer que temos juízes suficientes. Se eles fossem suficientes e estivessem bem geridos cumpriam os prazos que as leis lhes impõem.
Se não são suficientes, só há uma solução que é formar e contratar mais juízes.
Com o actual quadro de prazos processuais – que não deve ser mudado – não é razoável que um juiz tenha em stock mais de 400 processos, o que corresponde a cerca de dois processos por dia, em termos de trabalho acumulado por processo. Com a actual tabela de custas judiciais, facilmente se conclui que a essa média de meio dia de trabalho do juiz por cada processo, só possível com uma contingentação como a sugerida, a justiça poderia ser uma actividade altamente lucrativa.
Parece-nos que o corte do ciclo vicioso passa por um modelo de redistribuição dos processos que permita e obrigue ao cumprimento dos prazos, com o rigor imposto pelas leis processuais, em que não é necessário mudar grandes coisas.
É preciso, isso sim, fazer uma profunda reforma nos serviços, que ajudará a resolver outros problemas da justiça.
Não há a mínima justificação, nos tempos que correm, para que um juiz esteja assessorado por cinco ou seis funcionários. Se se partisse, com a adequada coragem para o desmaterizalização integral, bastaria um funcionários para cada juiz, considerando já a necessidade de o juiz ser assistido nas audiências de julgamento. Os outros poderiam ser muito bem utilizados para resolver o problema da acção executiva, que permanece insolúvel.
O estado a que as coisas chegaram é gravíssimo e as soluções anunciadas contribuirão para o seu agravamento.
Ou há a coragem de pôr os pés na terra e construir um modelo que permita, em prazo certo, recuperar os processos atrasados e impor o ritmo dos prazos legais aos processos novos ou assistiremos à debacle geral, em termos piores do que os que ocorreram no quando dos processos de falência ou de insolvência, que representam o retrato mais escandaloso da justiça portuguesa.
Não vamos lá com reformas da treta nem com processos de desmaterialização que não existem.
O Ministério da Justiça não conseguiu até agora uma coisa tão simples como a informatização do processo de injunção, que se resume a um «programinha» que permita registar o requerimento, notificar automaticamente as partes e emitir o exequatur.
Faz uma propaganda danada de uma coisa que se chama Habilus e que é inqualificável, em comparação com outros sistemas de gestão processual. É duvidoso tenha capacidade para, em tempo útil, criar uma solução interactiva que permita a efectiva desmaterialização dos processos judiciais, apesar de isso ser relativamente simples e de até já haver modelos em que se poderia inspirar.
E sem isso também não é possível dar o tal salto e requalificar um sistema falido como o que temos.
Não acredito que tudo esteja a ser movido pelos interesses de alguns grupos na privatização da justiça e pela protecção de alguns negócios que se vão fazendo no campo dos chamados meios alternativos.
O que sei – e acho que todos sabemos – é que esta propaganda da treta nos conduz diariamente para um abismo, que acabará por descredibilizar completamente o País.
Ou o primeiro-ministro José Sócrates dá atenção ao assunto e o trata com a frontalidade com que o temos visto tratar de outros, ou acabará, inevitavelmente por levar por tabela.
Isto é naif demais…

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