18 junho 2006

17/06/2006

Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artº 202º, 1 da Constituição).
Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (artº 202º,2).
A Constituição tem um tremendo buraco: é que os tribunais fiscalizam e podem julgar todos os órgãos de soberania e os seus elementos; porém não são fiscalizados por ninguém.
O nosso sistema aposta numa concepção quase teológica da infalibilidade da justiça.
Essa concepção alimenta uma tremenda fraude que começa logo no paradoxo de não haver meios, de nenhuma natureza, que obriguem os próprios tribunais a respeitar a legalidade que é pressuposto da sua própria acção.
É certo que apareceram por aí umas experiências tímidas – mesmo muito tímidas – de observatórios, que se ficam sempre pelas meias tintas e justificam tudo com argumentos conexos com a própria lógica da infalibilidade. É o excesso de processos, é a falta de meios humanos e logísticos, é redução das férias judiciais – tudo argumentos falsos e sem sentido.
O verdadeiro drama está na insindicabilidade dos tribunais por entidades externas, não corporativas.
Há problemas estritamente jurídicos que se resolvem (enquanto não acabarem com eles) com o mecanismo dos recursos. Mas há um conjunto de outros problemas que são insolúveis porque derivam de vícios acumulados, que só podem ser corrigidos por via de auditorias de qualidade realizadas por entidades externas.
Isso passa-se em todos os planos, desde o cível o criminal, passando pelo administrativo.
Ninguém tem a garantia de que o seu processo é tratado dentro de um «ordem normal» ou se é posto para baixo ou para cima… Na realidade, há prazos processuais muito precisos para os actos da secretaria, dos juízes e das partes. Mas só as partes é que os cumprem, porque se o não fizerem são sancionadas com multas.
Os juízes, normalmente, não os respeitam, justificando-se com o excesso de serviço, que nem sequer é comprovável.
O sistema permite, perfeitamente que se favoreça o andamento de determinados processos e o não andamento de outros.
Mas permite coisas muito mais graves, que assumem as características de autênticos horrores nas situações em que pleiteiam pessoas débeis ou muito débeis.
É a chamada «justiça do meia bola e força», a despachar, sem o mínimo cuidado e normalmente sem contraditório.
Assistimos, há longuíssimo tempo, à telenovela do julgamento do chamado «Caso Casa Pia». No entanto, discretamente, com pequenas notícias nos jornais e sem quaisquer alaridos, vemos ser condenados a elevadíssimas penas de prisão cidadãos acusados de crimes idênticos, que foram julgados, no máximo, em meia dúzia de sessões.
No «Caso Casa Pia» os arguidos são patrocinados por advogados conhecidos pela sua competência e pela sua litigância que forçam a discussão até ao mais ínfimo pormenor. Naqueles outros casos, ninguém sabe quem defendeu e como defendeu os condenados.
Não valerá a pena que nos questionemos sobre a qualidade da justiça num e noutros casos?
Não indiciará isto a existência de duas justiças, com qualidades diversas?
Saindo desta área e passando para qualquer outra, encontramos, em todas elas o mesmo problema e as mesmas questões.
Se passarmos pelos tribunais e analisarmos, com alguma atenção, a postura dos operadores constatamos, com frequência que ela é absolutamente diferente se um arguido é um desgraçado que tem o patrocínio de um jovem advogado ou se é alguém com poder económico, patrocinado por uma estrela.
Até o tom de voz com as pessoas são tratadas é diferente.
É preciso analisar, com um mínimo de cuidada e recorrendo às regras das ciências sociais, alguns dos mimetismos que marcam o sistema.
Há em Portugal uma tendência que não é nova mas que se vem agravando.
Os juízes, que deveriam ser independentes, favorecem, normalmente as posições do Ministério Público e das polícias.
Há quem diga que isso acontece por mera comodidade. Pode ser…
Eu vou, porém, mais longe: penso que essa tendência decorre de uma relação social viciosa e promíscua.
Antigamente, nas comarcas de província, criticavam-se, com frequência os juízes que eram vistos quotidianamente a tomar café com este ou aquele advogado. Não é por nada, mas ocorria que, normalmente, o índice de sucesso dos advogados que tomavam café com os magistrados era maior do que o dos outros, acabando essa prática civilizada por introduzir um factor de concorrência negativa no mercado da advocacia.
Ninguém aceitaria que se fizesse uma reforma em que os advogados tivessem escritórios no mesmo edifício dos escritórios do juiz, à semelhança do que ocorre com o Ministério Pùblico. Mas a cegueira está tão aprofundada que ninguém repara no facto de essa promiscuidade existir, de forma estável, nas relações dos juízes com o magistrados do MºPº.
É da natureza humana que tenhamos dificuldade em dizer «não» às pessoas com quem vivemos no quotidiano. Complicar as relações pessoais, para quê?
Isto é especialmente grave quando há interesses antagónicos dos quais se faz, por causa disso, um intolerável «mélange».
Antigamente, quando passei por Coimbra, ensinavam os mestres que cumpria ao Ministério Público a defesa da Lei e a perseguição dos que a violavam, algemado sempre ao imperativo da busca da verdade material.
Hoje – diz-nos a experiência – que a justiça é um puzzling; o que e preciso é encontrar as pedras em encaixá-las, mesmo que elas não encaixem lá muito bem. E depois é preciso fazer algum marketing, para que os cidadãos tenham a ideia de que o sistema funciona, quando, na realidade, isso é uma grosseira mentira.
Há coisas que arrepiam e que ficam escondidas ou não são divulgadas, para que os cidadãos não se alarmem.
Num quadro como este, há muito que o Estado deveria ter tomado as medidas necessárias para separar o Ministério Público da magistratura judicial acabando com essa promiscuidade de os acusadores partilharem os mesmos espaços dos juízes e impondo-lhes uma contenção e um afastamento idênticos aos que são impostos à defesa.
Trata-se de uma questão de elementar decência. É manifestamente pornográfico esse quadro quotidiano da entrada do juiz e do agente do MºPº, na sala de audiências, pela mesma porta.
As pessoas são – elas mesmas – sérias e honestas. Mas há mimetismos, comportamentos sociais, cumplicidades, que não podem deixar de ser tomados em consideração.
Uma dos defeitos mais graves, de que este quadro é gerador, é o do simplismo (não confundir com Simplex) que consiste em encontrar «soluções» pragmáticas a qualquer preço, apenas para resolver as pendências e «despachar processos».
Temos que pôr termo a isso, sob pena de o sistema se transformar num triturador de pessoas e num gerador de monstros.
Apesar das rotinas, há gente que se indigna.
Vale a pena ler, a propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no chamado «Caso Joana» e, sobretudo, a declaração de voto que o acompanha.
Há questões que têm a ver com as mudanças da sociedade e que são hoje incontornáveis. Uma delas é a da necessidade de auditar o funcionamento da justiça, de acordo com regras de auditoria procedimental, que pertencem a um cosmos diferente do da própria justiça.
O recurso às novas tecnologias pode permitir a realização de autênticos milagres neste domínio.
Só um exemplo… Há decisões tão estapafúrdias proferidas por tribunais colectivos (especialmente pelos superiores) que nos deixam dúvidas sobre se todos os juízes analisaram os processos ou se se limitaram assinar de cruz a proposta do relator. Com a desmaterialização dos processos é perfeitamente possível registar dados sobre a intervenção de cada um dos juízes no que respeita ao estudo de determinado caso e ter uma noção minimamente razoável sobre a qualidade da sua análise, necessariamente dependente do tempo despendido.
Há uma regra perversa – e hoje repetida como um sol-e-dó nos recursos de toda a natureza – que diz que o objecto do recurso se define pelas conclusões.
Não é uma regra má se for interpretada em conformidade com o espírito do sistema.
O legislador quis que o recorrente, depois de alegar as suas razões, levasse, de forma sintética e precisa, às conclusões as razões de facto e de direito que motivam o pedido de alteração da decisão.
Parece-nos óbvio que as conclusões não podem sobreviver sem a explanação que as antecede e que, por isso mesmo, não podem os juízes ignorar tal explanação. Certo é que, em muitos casos, parecem fazê-lo, agarrando-se exclusivamente às conclusões e interpretando-as até de forma descontextualizada e contraditória com os documentos constantes do processo.
Noutras vezes – o que é ainda mais paradoxal – considerando as conclusões longas, mandam os relatores que as mesmas se reduzam, sem que para isso apresentem a mínima justificação, para além da extensão e da preguiça indiciária de ler textos de grande dimensão.
Quando isto acontece no topo da hierarquia pode ser dramático porque os erros se abafam, no fim de contas, com o fim das possibilidades de recurso.
O drama é especialmente grave nas situações em que se pretende a reapreciação da matéria de facto.
Nas mais das vezes há indícios de que as gravações não foram ouvidas ou, se o foram, isso aconteceu em circuito fechado, sem que houvesse mínima possibilidade de os interessados verificarem se tal audição, que não é uma mera formalidade, foi feita ou não.
Parece-me que é elementar distinguir duas realidades de diversa natureza:
uma que é a realidade jurídico-processual vista à luz dos parâmetros legais e das habilidades interpretativas de cada um dos operadores protagonistas do processo. Esta realidade tem sempre um fim que é formalmente perfeito…
outra é a realidade procedimental, vista à luz de critérios organizacionais, que vão mais fundo em termos de apreciação do cumprimento de normas de qualidade cuja eventual violação pode defraudar completamente a solução formal encontrada no plano jurisdicional.
Não podemos continuar a abafar os erros e a deixar-nos embalar por esse discurso da treta que usa o slogan da «independência do órgão de soberania que são os tribunais» para impedir todo e qualquer tipo de controlo, nomeadamente controlos de qualidade que só podem ser feitos por entidades externas.

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